Blog do Paulo Ruch

Cinema, Moda, Teatro, TV e… algo mais.

Clara Santhana atua, canta e dança em seu novo espetáculo musical, “Outras Marias”/Foto: Ariel Cavotti

A dramaturga Márcia Zanelatto e a atriz e cantora Clara Santhana se unem novamente após o retumbante sucesso “Deixa Clarear” em um musical que tem por finalidade mostrar a história de sete bravas mulheres que resistiram às dificuldades impostas pela sociedade

Se há algo em comum entre a dramaturga Márcia Zanelatto e a atriz e cantora Clara Santhana é o desejo genuíno de ambas de fazer, através das Artes, com que grandes mulheres sejam reconhecidas pelos seus valores, talentos e qualidades, alcançando-se o maior número possível de pessoas que, de alguma forma, desconheciam-nas. Um perfeito exemplo desta sintonia ideológico/artística é o musical sobre a cantora e compositora Clara Nunes “Deixa Clarear”, estrelado lindamente por Clara e escrito primorosamente por Márcia, um retumbante sucesso que completa dez anos somando cerca de 500.000 espectadores. O musical “Outras Marias”, idealizado e pesquisado com profundidade pela atriz e cantora, parte da valiosíssima premissa de se representar nos palcos, dentro de um arco narrativo coeso, a história de sete mulheres, sete Marias, que contribuíram com seus atos e resistências para que a condição feminina fosse vista por óticas que fugissem do machismo estrutural e preconceitos os mais diversos.

“Outras Marias” não é só um entretenimento musical, mas um alerta, uma denúncia, um grito contra as forças que tentam perpetuar a invisibilidade feminina

Márcia Zanelatto, uma de nossas autoras teatrais mais respeitadas, alinhavou com muita sabedoria, e em alguns casos com humor, os retratos históricos de cada uma dessas Marias, evitando a narração episódica pura e simples, apostando em um compartilhamento dos fatos mais íntimo, pessoal e humanista. Com a direção musical impecável de Cláudia Elizeu, acompanhada em cena das excelentes percussionista Geiza Carvalho e acordeonista Verónica Fernandes, Clara, entre pontos e canções de origem popular, inicia o seu bem-sucedido périplo em nos relatar as vidas de Maria Padilha de Castela (amante do Rei de Castela coroada rainha depois de morta), Maria Felipa de Oliveira (que lutou nas guerras pela independência da Bahia), Maria Quitéria (cigana portuguesa), Maria Bonita (bandoleira mulher de Lampião), Maria Navalha, Maria Doze Homens (capoeirista que enfrentou doze homens em defesa de uma mulher) e Maria Mulambo. Algumas delas foram incorporadas como entidades de religiões de matriz africana praticadas no Brasil. Márcia, com estes relatos, objetivou com notável propriedade levantar questões importantes, como a opressão sofrida pelo ser feminino, o cerceamento de suas liberdades, vontades e escolhas, seus poderes de fala, a busca por um lugar com igualdade de direitos independente do seu gênero e a sua invisibilidade causada pela pele de cor preta. Quanto ao humor, este é percebido, por exemplo, em uma situação em que Clara, num tom professoral e didático, enumera as terminologias reducionistas de caráter machista usadas pelos homens como formas de se tratar uma mulher, resultando quase sempre na objetificação de seu corpo. Patrícia Selonk, uma das fundadoras da Armazém Cia de Teatro e premiada atriz, faz a sua estreia na direção nos provando o quanto a sua riquíssima experiência cênica pode contribuir nesta nova função. Patrícia, com sensibilidade, olhar apaixonado e elogiável tato, explora as inúmeras potencialidades de Clara, tanto como intérprete quanto como cantora, criando marcações que valorizam o centro do palco e o belo cenário de Dóris Rollemberg, com seus imensos painéis de tecido translúcido com emaranhados de cordas vermelhas situados no fundo da ribalta e o manequim confeccionado por Junior Alexandre (ótima sacada). Além disso, a divisão das cenas musicadas e faladas é feita de modo bastante sedutor. Clara Santhana nos encanta irremediavelmente com sua versatilidade, carisma, beleza e talento ao representar, conferindo tons e gradações emocionais diferentes, cada uma das figuras históricas femininas propostas. Valendo-se de sua natural comunicação com o público, a atriz nos revela também a sua habilidade para recortes cômicos. A artista possui vastas força e presença cênicas capazes de levar a plateia consigo por todo o espetáculo. Com a sua admirável voz que passeia pelas mais diversas notas nos cantos entoados, Clara nos apresenta ainda movimentos de corpo, gestuais e danças executados com potência e sensualidade (resultado do incrível trabalho da diretora de movimento Cátia Costa). A iluminação de Daniela Sanchez é deslumbrante, com a adoção de um plano geral suave e a incidência de focos com matizes diferenciados (azuis, lilases e principalmente vermelhos) sobre os painéis citados, uma maravilha absoluta. Os figurinos de Wanderley Gomes primam pela fluidez e elegância, seja pelo tecido de dupla face que serve tanto para uma saia quanto para um xale ou manto ou pelo macacão nude. A peça conta ainda com a poderosa voz em off de Iléa Ferraz e o harmonioso desenho de som de Fernando Capão. “Outras Marias” é uma obra musical que cumpre com maestria a sua missão não só de entreter aqueles que amam a arte teatral mas também a de alertar, denunciar e gritar contra as relutantes correntes que insistem em apagar as mulheres, suas condições e seus legados. Que as Marias se façam ouvir pelo outro, pelos outros e por todos os outros.

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s

%d blogueiros gostam disto: