
Muitas são as maneiras de se expressar cenicamente, e a Cia Dos à Deux, com o seu teatro gestual reconhecido internacionalmente, prova-nos a potência e a diversidade de outras linguagens
Geralmente associamos, até de forma inconsciente, a prática do exercício teatral à oralidade. Pensamos tão logo no texto, em seus diálogos, na tradução ou adaptação. Todavia, muitas são as maneiras de se comunicar com o público adotando-se a mesma potência causada pela palavra. O butô, a despeito de se enquadrar na categoria de dança, possui fortíssimos elementos teatrais. A prestigiada e internacional Cia. Dos à Deux, criada na França, comemorando os seus 25 anos de história, formada por André Curti e Artur Luanda Ribeiro, mergulha em uma pesquisa profunda, cuidadosa e de vultoso impacto visual na manifestação da arte cênica por meio do gesto, da fala imensamente variada e pujante que o nosso corpo transmite. O resultado de tanta paixão da dupla é comprovado em seu mais recente espetáculo, o belíssimo e arrebatador “Enquanto Você Voava, Eu Criava Raízes”.
André Curti e Artur Luanda Ribeiro são grandes artistas que exploram em seu nível máximo as inimagináveis possibilidades que a máquina corporal tem de se expressar
Partindo-se da ideia de se convidar os espectadores a imergirem em seus múltiplos medos que os atravessam a fim de se chegar a estados, sentimentos e emoções chamados de “espaços íntimos de sensações” e os modos como lidamos com os nossos abismos pessoais, os nossos vazios internos, a montagem, com o seu estupendo, inventivo e pós-futurista cenário (criação de André e Artur) que nos oferece um enorme círculo com engrenagens metálicas em suas bordas assemelhado a uma lente, tendo em seu centro um tablado, e ao fundo uma espécie de portal (segundo eles, um “oráculo dos sonhos”), exibe-nos dois grandes artistas que exploram em seu nível máximo com impressionante perfeição as inimagináveis possibilidades que a máquina corporal tem de se expressar. Utilizando-se de referências cinematográficas, como o expressionismo alemão de F. W. Murnau (iluminação soberba de Artur Luanda Ribeiro com rica valorização das sombras; Artur também procura dar um especial enfoque à força do azul e do vermelho) e até mesmo David Cronenberg e sua estranheza imagética (vista em algumas projeções; outras tantas, trabalho do diretor de fotografia Miguel Vassy e da artista plástica Laura Fragoso são de uma beleza indescritível), a companhia confirma a sua intenção de se misturar outras artes ao seu repertório. A coreografia imaginada pelo par nos entrega perspectivas tão diversas quanto fascinantes, como corpos em sincronia, corpos que se fundem, duplicam-se e assumem formas não humanas. A encenação é acompanhada pela intrigante música original de Federico Puppi, que se casa brilhantemente com a proposta da narrativa. Ticiana Passos, responsável pelos figurinos, buscou com inteligência a liberdade impressa em saias fluidas para os atores/performers. Com dramaturgia e direção de André Curti e Artur Luanda Ribeiro, unindo o onírico com o lirismo poético, “Enquanto Você Voava, Eu Criava Raízes” reafirma a Cia. Dos à Deux como instrumento artístico poderoso na sedimentação definitiva do teatro gestual como expressão legítima e genuína, abrindo outras portas válidas de comunicação cênica. Nós, o público, criamos raízes com a sua arte e para onde ela for voaremos ao seu lado.