
Montada como experimento cênico virtual em 2020, a peça “O Astronauta” vem seduzindo plateias presencialmente com a jornada solitária e oprimida de um homem que viaja ao espaço e se confronta com as mais diversas questões existenciais
Há peças que parecem moldadas para um único e exclusivo ator, atendendo não só ao seu talento e personalidade como às suas expectativas artísticas e intelectuais. Tal conceito se materializa com perfeição no espetáculo idealizado por José Luiz Jr. e escrito por Eduardo Nunes, com direção geral do primeiro, a princípio montado de forma virtual em 2020 (indicado ao Prêmio APTR 2021 como “Melhor Espetáculo Inédito Editado”), “O Astronauta”, com Eriberto Leão (responsável com José Luiz Jr. pela adaptação para os palcos físicos). Hoje seduzindo plateias presenciais, a montagem escrita com apuro e aprofundada pesquisa histórica por Eduardo Nunes nos oferece com inteligência e beleza, emocionando-nos, a jornada solitária e heroica de um astronauta rumo ao mistério do espaço, condição que o leva irremediavelmente ao confronto direto com os seus afetos familiares, representados em passagens com o seu pai (Jaime Leibovitch em participação especial em vídeo), mãe e avô, com o seu primeiro contato com a morte (a de seu avô), com as suas memórias que vão aos poucos se dissipando, com a implacabilidade do tempo e com os seus mais íntimos medos. Não raro essas passagens familiares guardam relação com o encantamento que os corpos celestes nos provocam.
Com brilhante atuação de Eriberto Leão, caracterizada pela sua absoluta verdade, o espetáculo, além de possuir grande qualidade artística, conduz o público a uma viagem imersiva e sensorial
Nesta viagem espacial acompanhada ao vivo por milhões de pessoas no mundo (esta contingência é exaltada pelo ambicioso comandante da missão interpretado, também em vídeo, por Zé Carlos Machado), o astronauta mantém contato com Hal, uma fria e por vezes irônica inteligência artificial representada pela voz da atriz Luana Martau (a voz de Hal em cena é uma justa homenagem à maior obra-prima cinematográfica feita sobre o tema até então, “2001: Uma Odisseia no Espaço”, 1968, de Stanley Kubrick, baseada no conto de Arthur C. Clarke, “The Sentinel”, em que um computador, Hal 9000, comunica-se de maneira opressora com o único tripulante da espaçonave). Assumindo claramente uma linguagem própria de cinema, pois se trata de uma ficção científica aliada ao drama, a peça é generosa em outras boas referências à cultura pop, como ao cantor, compositor, ator e produtor musical britânico David Bowie e seu alter ego Ziggy Stardust (dois hinos de David são cantados potentemente por Eriberto, “Starman”, em sua versão original e em português, e “Space Oddity”). Com o objetivo de se questionar modos de expansão da mente, o personagem, em seu discurso incisivo, lembra-nos de próceres da contracultura, como Aldoux Huxley e Timothy Leary. Toda esta fusão de informações/referências contribui para a bem-sucedida contextualização da narrativa e o consequente interesse do público. A direção geral de José Luiz Jr. atinge robusto sucesso com o equilíbrio alcançado com a atuação de Eriberto, suas interações com os ótimos atores participando em vídeo e voz e as concomitantes e lindíssimas projeções de Rico e Renato Vilarouca (o videografismo e a realidade virtual são arrebatadores e possuem valioso registro histórico – vídeo e edição complementar de José Luiz Jr.). José Luiz explora toda a potencialidade interpretativa, comunicativa e física de seu protagonista, ocupando os principais pontos do tablado, inserindo com notável adequação no timing cênico os números musicais. Eriberto Leão, um ator exponencialmente admirado por espectadores das várias áreas onde desempenha a sua arte com vitórias, entrega-se sobremaneira ao universo emocional deste “homem do espaço”, revelando-nos com absoluta verdade e brilho as suas dores existenciais, angústias, conflitos anímicos não resolvidos, temores, além da vulnerabilidade diante de forças que lhe são superiores. Eriberto demonstra ainda superlativa disposição física quando assim lhe é exigido (esmerada preparação corporal de Dani Saad), comunicação fluida muito bem acolhida pelo público e intensidade em seus momentos musicais (direção musical impecável e inspirada de Ricco Viana que nos entrega uma trilha roqueira, intrigante, misteriosa, com ruídos e sinais enigmáticos). Carla Berri, diretora de arte, aposta no estilo e minimalismo ao reproduzir com beleza e assepsia o interior de uma nave, compondo a ribalta com um assento acolchoado em seu centro próximo a um cubo iluminado. Vale-se também de uma estante metálica com várias garrafas dispostas (o minimalismo só é quebrado pela presença do telão semicircular no fundo do palco). Adriana Ortiz realiza um excelente trabalho de iluminação, ora mais delicado e sensível (com tons mais amarelados) ora mais forte e pujante (sobrecarregando no azul e no vermelho), utilizando-se, dentre outros recursos, de quatro “tripés” de spots posicionados estrategicamente. Joana Bueno esbanja criatividade ao desenhar a roupa espacial de Eriberto, com textura acetinada e cores dourada e azul, além do capacete com luz interna. “O Astronauta” não é só um espetáculo de grande qualidade artística em conexão com o nosso tempo e as nossas mais caras questões, mas uma experiência imersiva e sensorial da qual não esqueceremos. Filhos do medo que somos, somos a evolução, cooperemos uns com os outros, não temamos em embarcar com Eriberto Leão nesta viagem pelo universo mental e sideral. Afinal, o “universo é mental”.