Blog do Paulo Ruch

Cinema, Moda, Teatro, TV e… algo mais.

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Foto: Guga Melgar

Era para ser Isaac e Ismael, os filhos de Abraão. A religiosidade da mãe cuja sombra da esterilidade a conturbou assim impusera. Quem dera. Os ateísmo e comunismo do pai Otto fizeram com que preferisse atribuir homenagem aos fundadores de Roma, Rômulo e Remo, amamentados por loba mãe, consoante à etimologia do sobrenome do clã, ao nomear seus filhos gêmeos. Rômulo (Eriberto Leão) e Remo (Otto Jr.) cresceram juntos em desacordo. O mesmo desacordo que fez Isaac “lançar pedra” na cabeça de Ismael. Aos dezoito anos, com o coração aberto para “grandes novidades” e fechada para “pequenas antiguidades” sob determinante influência de velho hippie que enfrentou a lama de Woodstock e viu o dedilhar vivo e feroz de guitarra de Hendrix, sem ter deixado de devorar o legado dos “beatniks” Jack Kerouac e Allen Ginsberg, além do poeta William Blake. Rômulo foi apresentado solenemente a um mundo novo supostamente admirável. Abandonou o tédio, a família, o “nada”. Roubou o vil metal que nos é essencial do suor daqueles que compartilhavam o mesmo teto. Descobriu-se escritor. Suas ideias pululavam, e fincaram raízes em 23 “brochuras” que jamais poderiam ser lidas pelos “lobos que o amamentaram”. Língua estranha em páginas numeradas. Fosse em Londres ou no alto da cabeça de um anjo de Berlim, como se em filme de Wim Wenders estivesse, “Asas do Desejo”, o desbravador de letras abriu suas veredas por entre as capas e sobrecapas dos livros que passou a escrever. Sua mente o traiu. A ideia sumiu. O escritor sentiu dor. E a chave grudada na carteira de identidade dilacerada era a ponte para a “volta ao lar de Pinter”. Entrementes, a vida foi inclemente com Rosália (Betina Viany) lhe dando a demência que só as borboletas compreendiam. O pai Otto feneceu, e no jardim regado sempre fora cuidado. Liza (Renata Brida), veterinária, primeiro amor de Rômulo, talvez tenha optado tratar os animais bichos, pois os animais homens não têm tratamento cabível. Casada há anos com Remo, entristece-se por não ver o seu ventre crescer. Um casamento em desalinhamento. Remo é mecânico, ofício herdado do pai, conhecedor emérito da “mecânica das lambretas”. Há uma linda “lambreta” Harley-Davidson que para atingir a sua majestade lhe falta a peça “borboleta”. Rômulo com cigarro na boca, existência em bancarrota, retorna para o seu “rebanho sem pastor”. O jardim onde o pó do pai dorme virou refém e testemunha de traições, perdões e não perdões, cobranças pelas fuga e andanças, incesto involuntário, e a sopa que se bebe vagarosamente. Com isso, o dramaturgo Walter Daguerre imbuiu-se de sua vasta sabedoria cultural amparado por referências várias, sua indiscutível e arrebatadora habilidade em transformar uma situação viável num panorama logicamente contextualizado numa narrativa teatral, a que se deu o nome de ” A Mecânica das Borboletas”. E para pôr no tablado todo esse ideário acerca do ininteligível comportamento humano, o aclamado diretor Paulo de Moraes recebeu honrosa “convocação”. Com o seu mais do que costumeiro senso de percepção espacial e visão de planejamento coerente do conjunto cênico, Paulo estudou cada detalhe de ocupação do palco, embate temporário ou definitivo, “puxando e repuxando” com a proeza de exímio encenador a recôndita emoção da matéria física dos intérpretes. Eriberto Leão constrói Rômulo com milimétrica e exata doses de amargura, culpa, desejo suplicante de redenção, dualidade no proceder, indignação ideológica, defesa irrefreável de suas verdades e compaixão seguidas por postura incisiva nos instantes rogadores de sensações e posicionamentos do escritor não mais inspirado que a tudo o que observa anota em bloco de notas, que se refestela em chão, lânguido, e cantarola música dos The Doors. Betina Viany, com agudeza cognitiva necessária obtém amplo sucesso na constituição de sua Rosália, em que mostra ao público o quanto pode ser dolorido quando o nosso entendimento do mundo é corroído pela demência. A patologia psíquica a faz viver em condição existencial paralela, que mesmo desta forma não a exime da cruenta realidade envolvente. Renata Guida, convicta e provida das qualidades sedutoras de boa atriz, busca um atalho próprio para Liza, fazendo desta uma mulher por vezes estoica, sofrida, carente, infeliz no campo afetivo, sem no entanto deixar de demonstrar lampejos de esperança, solidariedade e candura. Otto Jr., como Remo, é um ator que absorve de modo pleno todas as características atinentes ao mecânico que se prendeu ao comodismo e rotina de sua vivência, à “prisão” de união instável com sua esposa, à preocupação em preservar o mínimo de estrutura do núcleo familiar, mas que no fundo mantém um avassalador desejo libertário de si mesmo. Um elenco de alta qualidade que defende com bravura o conjunto das intenções dramáticas, porém com certo viés otimista, da dramaturgia de Daguerre. O cenário de Carla Berri e Paulo de Moraes é de uma beleza seca, real, enternecedora, que se alterna de maneira criativa nos planos superior e inferior, respectivamente o “ideal”, o “sonho” e a concretude sem solicitude do convívio social. Um carro sendo aos poucos montado, carcomido pelas “rugas de ferro”, semelhante à jipe “guevariano” com seus faróis ofuscantes que possuem a força de um discurso político sem sofismas. Um jardim dianteiro que nos lembra ter “brotado” de um livro romântico de contos de cabeceira, no qual descansa o “gigante adormecido patriarcal” Otto. As duas borboletas que o sobrevoavam querem dizer: – Não se esqueçam da sincronicidade… 16 de junho! A data em que o ciclo começou e se fechou para que outro fosse reiniciado. A rústica mesa de madeira “cansada de guerra” e suas companheiras cadeiras (ou banquetas), onde se degusta a sopa quente que “aquece a mente”. A pia da cozinha na qual nasce o que se come e o que se bebe. A caixa de ferramentas cuja única “ferramenta” inexistente é aquela de que mais precisamos, ou seja, a que consertaria os nossos erros. Por uma curta escada, chega-se ao segundo andar, e deparamo-nos com a “star” Harley. Imponente, esbelta, brilhante, com seu manto sagrado vermelho metálico. Por detrás do palco, uma enorme janela semicircular subdividida em esquadrias revestidas por material translúcido que causa significativo impacto cenográfico. A iluminação de Maneco Quinderé não se inibe nem um pouco em reafirmar sua precípua função num espetáculo teatral. Ela “afaga” o verde. “Abre os braços” para “fade in” e “fade out”. “Perde-se em paixão” por um plano aberto, cuja “abertura” não nos machuca os olhos, muito pelo contrário, acarinha-os, transitando entre o onírico e o realismo. Luzes transversas como flechas. Sombras retóricas que servem para exclamar que “onde há luz há sombras”. Os já citados faróis do carro que se recusam a serem coadjuvantes. Tudo valorizado por um “fog” nada esnobe. Um “fog” não londrino como se fosse hino da anunciação do mistério teimoso que monitora os nossos passos. Os figurinos de Rita Murtinho escolhem apropriado e racional caminho que naturalmente se coaduna com toda a essência do enredo proposto pelo autor. A rebeldia enraizada de Rômulo na sua permanente tentativa de reconciliação com o seu passado é desenhada por casaco de couro, calça, tênis e gravata com respeito ao desleixo de um… rebelde; a dona de casa Rosália, simplória com a altivez das “rainhas do lar”, cuja inteligência sofreu abalos irreversíveis diante da implacabilidade do destino ou algo similar, traja prosaica saia, calça por baixo, blusa e um xale para ocasiões especiais (uma simplicidade pertinente e por isso mesmo adequadíssima ao papel de Betina); já a Liza de Renata Guida nos remete ao atual, moderno, contemporâneo e casual, sem ser extravagante, utilizando-se de saia longa, blusa com gola larga que se aproxima dos ombros, e botas de cano alto; e Remo, como mecânico, não poderia deixar de usar o indefectível macacão sobre t-shirt, contudo em sua fase libertadora nada como um signo que é uma jaqueta para indicar o seu estado recente. Rita é cumpridora de reinante premissa outrora dita para nos deixar ambientados com a sinopse que a nós se apresenta. A trilha sonora original de Ricco Viana é em sua maioria incidental, não menos ligada à racionalidade ou à emoção, sublinhando cenas em que se clamam o tenso, a placidez, o suspense, o cotidiano, um romantismo utópico no dramático painel de nossas missões terrenas, cujas utopias nos cospem nos rostos sem pedir licenças. Culmina com a célebre canção “Al Otro Lado del Río” (de Jorge Drexler). Por que será que nunca há um barqueiro que não seja devoto da usura e nos leve sem perguntas para conhecer “o outro lado do rio”? Como nos é normal pensarmos que este “outro lado do rio” seja bem melhor. Todavia, Remo “encontrou o seu barqueiro”. Provável que aquelas duas borboletas o ajudaram (e mais uma terceira, a peça que faltava para a Harley), para enfim dar o seu grito de liberdade, o seu “freedom”, ouvir os conselhos de Kerouac, e seguir “on the road”!.

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