Blog do Paulo Ruch

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Foto: Mauro Kury

Aproveitando-se dos debates recentes de lado a lado em torno da liberação ou não das biografias não autorizadas, o título do monólogo estrelado por Paulo Betti, que está completando 40 anos de carreira, não poderia ser mais apropriado, “Autobiografia Auto-risada” (o trocadilho já nos revela um sinal da adoção do humor por parte do autor, o próprio Paulo, em seu texto, ao narrar no formato dramatúrgico citado parte da trajetória de sua vida, principalmente as infância e adolescência no interior de São Paulo, em específico Sorocaba, nos idos dos anos 50 e 60, e sua fase na EAD, Escola de Arte Dramática da USP, Universidade de São Paulo, também abordada). A proposta de se montar uma peça com viés autobiográfico é, por si só, arriscada, temerária, levando-se em conta determinados fatores, como o potencial interesse que a vida do biografado poderá causar em terceiros. Vemos muitas biografias sendo retratadas nos palcos, sejam elas musicais ou não, mas, em pouquíssimas vezes, assistimos a um espetáculo cujo protagonista é o único contador de sua íntima história real, além de codirigi-la (com Rafael Ponzi). No entanto, o que se depreende ao avaliarmos a encenação de Paulo Betti é que se obteve uma conjugação extremamente harmônica, emocionante, verdadeira, lírica e divertida (apesar de alguns momentos de notada tristeza) de dramaturgia, direção e atuação. No belo cenário de Mana Bernardes, que busca uma rusticidade poética ao dispor sobre a ribalta um largo varal com panos e roupas dependurados, pilhas de livros (há uma vela que permanece acesa em cima de uma delas durante toda a peça), um casebre formado por camadas de tecidos diáfanos, um extenso painel ao fundo do espaço cênico sobre o qual se projetam significativas e simbólicas imagens, um microfone e seu suporte e uma banqueta de madeira, testemunhamos o desfiar encantador de “causos” contados por um Paulo Betti visivelmente entregue aos seus mais honestos sentimentos e emoções. Paulo se vale de sua prodigiosa experiência no ofício, seu talento incontestável e reconhecido carisma para fazer com que a plateia não seja somente uma mera e passiva ouvinte de seus relatos, mas que seja cúmplice de sua jornada, identifique-se de algum modo com a mesma, e com o intérprete se emocione. De pés descalços, vestindo apenas uma calça off-white e uma camisa social branca (o discreto e charmoso figurino, que inclui ainda uma improvisação de saia, um grande chapéu de palha e um paletó cinza, coube a Leticia Ponzi), o ator dialoga espontaneamente com os espectadores (não se vislumbram quaisquer resquícios de barreiras que impeçam a comunicação direta entre ambos, configurando-se como um dos pontos fortes da obra), discorrendo de modo linear ou não acerca dos acontecimentos que definiram a sua identidade como homem e artista. O dramaturgo em nenhum instante se esquiva de revelar aspectos particulares de sua família de origem humilde. Utilizando-se do interessante recurso de nos informar o significado dos nomes de seus parentes, o que nos dá uma possível previsão dos respectivos perfis, somos defrontados com episódios que exemplificam com potência como se convivia em distinto período com hábitos e costumes tão peculiares, inusitados, todavia, genuinamente naturais para o universo do qual faziam parte. Há em suas, pode-se afirmar, confissões, elementos que caracterizam o comportamento de indivíduos modestos que subsistem por meio de trabalhos forçosos, sem acesso ao estudo, com uma sabedoria singular adquirida pela dura vivência, e um alto grau de misticismos e sincretismos religiosos, manifestados por preces, benzeduras, simpatias e crendices. O Paulo criança, que ora se divertia com seu prosaico pião, e ora se aprazia com um brinquedo da época que consistia em uma vara que dominava um círculo, era obrigado a encarar a morte sem nenhum tipo de máscara. Nestes tempos que nos parecem longínquos, apenas nos parecem, o infante que se deliciava com os programas de rádio e idas posteriores ao cinema, enfrentava a visão dolorosa de um animal sendo abatido para o ágape. A opressão sexual era inclemente, alavancada por lendas e mitos. Os meninos recorriam às luxuriosas publicações de Carlos Zéfiro. A atriz francesa Michèle Mercier era objeto recorrente de fantasias inescapáveis. O ator, temporão, o caçula de 15 irmãos, evidencia que sempre manteve laços afetivos acentuados com o seu clã. E nos deixa transparecer que mesmo em meio a tantas adversidades havia uma felicidade implícita, uma ingenuidade que não se vê mais na atualidade. Desenha-se uma nostalgia sem teor melancólico. Em todo o conjunto cênico se percebe a inserção coerente de regionalismos, encontrados nas canções e no vocabulário usados. Paulo Betti traz para o seu texto citações de poetas como Menotti Del Picchia. Aliás, em bastantes passagens de sua dramaturgia, deparamo-nos com fraseados rimados, jogos de palavras. O intérprete em certas ocasiões canta músicas de caráter regional que lhe são preciosas com plena sensibilidade. Todo o processo de narração da história é escorado eficientemente nas projeções contínuas de imagens, provocando-nos estimulante curiosidade, que funcionam quase como um “segundo personagem”. Fotos antigas, certidões, documentos, diplomas, registros históricos servem para realçar e oferecer uma maior verossimilhança aos fatos descritos. A direção de Paulo Betti e Rafael Ponzi (assistência de direção de Juliana Betti) enfatiza a presença de um artista, com sua emoção, sobre um tablado, revelando, assumindo, confessando, expondo a verdade do cidadão Paulo Betti no tocante às suas experiências vividas. Muitas delas sofridas. Temos a nítida impressão de que se trata de um processo catártico de um consagrado ator, que por alguma razão louvável precisou lidar com memórias delicadas de seu passado. Não é fácil tocar em cicatrizes por vezes não fechadas, mexer em feridas que atravessam o tempo, lembrar-se de entes queridos que foram indispensáveis para o que somos hoje. E Paulo Betti teve a coragem de enfrentar a sua história, esmiuçá-la, revolvê-la, avaliá-la, senti-la, e o mais eminente, compartilhá-la conosco. Tanto Paulo quanto Rafael Ponzi lograram com inegável êxito levar esta insigne ideia para o ambiente cênico. A atuação de Paulo Betti é pautada em distintos segmentos, todos eles no mesmo nível de excelência. O ator, respeitado por seus inúmeros trabalhos no teatro, cinema e TV, possui um domínio de cena absoluto, que nos fica claro nos solilóquios, nas narrações de histórias, na personificação de seus familiares, vizinhos e pessoas que lhe eram próximas, e na conversa franca com o seu público, que desde o início do espetáculo se deixou levar pela magia do universo verídico exposto. Uma interpretação sensível, honesta e intensa, sem preterir uma comicidade elegante, amparada pela bonita voz do ator, que saboreia cada palavra emitida, e brinca, folgazão, com a multiplicidade de seus sons. A direção de movimento de Miriam Weitzman potencializa as capacidades expressivas de Paulo Betti, que se move e pausa com esbelteza (há dois atos que merecem a nossa atenção: o ator dança na plateia com uma das espectadoras, e dá vida a uma senhora com idade avançada com um trabalho de corpo criterioso). A iluminação de Dani Sanchez e Luiz Paulo Neném é admirável. A dupla nos oferta um quadro de cores e variações luminosas enternecedores. Azul, rosa, e outras tonalidades formam um conjunto pictórico rico. Há focos sobre o intérprete, meias-luzes e um plano aberto suave. A trilha sonora de Pedro Bernardes aposta em um cancioneiro regional que invariavelmente nos sensibiliza, além de clássicos como “O Mar”, de Dorival Caymmi, e a icônica “Je T’aime Moi Non Plus”, entoada por Serge Gainsbourg e Jane Birkin (e outras composições). “Autobiografia Auto-risada” é um espetáculo que coloca a verdade de um artista e sua história em um patamar meritório, uma encenação que reafirma o talento de um ator como Paulo Betti, ostentando ainda a sua aptidão para a dramaturgia e para a direção, e que se apresenta como uma alternativa de um teatro diferenciado, que mistura emoção e entretenimento, sempre com qualidade. Serve também para confirmar uma intimidade conquistada ao longo de anos com o seu público. Vimos Paulo Betti frente a frente consigo mesmo. Vimos Paulo Betti encarando o seu reflexo num imaginário espelho. Ao final da peça, vimos Paulo Betti nos revelando que o significado de Paulo é “pequeno”. Isto é um bom augúrio, pois toda e qualquer grandeza se originou incondicionalmente em uma potencial pequeneza. Paulo Betti está autorizado para mostrar a grandeza do “pequeno” do seu nome Paulo, em sua autobiografia com risada, no espaço de um palco iluminado, que representa as folhas abertas de um livro de amor declarado .

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