
Othon Bastos, em sua primeira montagem solo, narra com entusiasmo e graça a sua linda e inacreditável história de vida
Não são todos os dias em que o público de teatro brasileiro tem a rica oportunidade de assistir a um de nossos mais celebrados intérpretes, com vitoriosa trajetória no cinema, nos palcos e na TV, narrar com entusiasmo e graça sua linda e inacreditável história de vida, que se mistura com a das Artes no país, em cerca de uma hora e meia de espetáculo. É o que faz generosamente o baiano de Tucano, figura exponencial do Cinema Novo, Othon Bastos, com os seus admiráveis 91 anos de idade e 73 de carreira, em seu primeiro monólogo, escrito e dirigido por Flávio Marinho, “Não Me Entrego, Não!”, sucesso absoluto na programação cênica atual.
Com bastante humor, emoção e poesia, tudo o que há de mais relevante na trajetória do ator está presente
A belíssima dramaturgia de Flávio Marinho, respeitado profissional com muitos êxitos em sua bagagem, foi sendo construída ao lado do ator através de longas conversas e profunda pesquisa, inclusive se utilizando de farto material escrito pelo próprio reflexo dos pensamentos que nortearam suas vivências. Só mesmo um autor experiente e habilidoso como Flávio poderia ser capaz de condensar nos limites de um texto teatral os inúmeros e importantes episódios que marcaram os caminhos do garoto que na infância lia para a sua turma de colégio um poema de Olavo Bilac. Sabiamente, o dramaturgo, indicado tanto como autor quanto como diretor ao Prêmio FITA 2024 (Festival Internacional de Teatro de Angra), a fim de abarcar todos os elementos atinentes ao percurso trilhado pelo protagonista, dividiu a peça em blocos temáticos: trabalho, amor, teatro, cinema e política. Nada escapou à sua visão acurada. Com bastante humor, emoção e poesia, tudo o que há de mais relevante na história do rapaz que almejava ser dentista está presente. No trabalho, seus primeiros parceiros artísticos foram Walter Clark (futuro produtor e executivo da Rede Globo) e Roniquito (Ronald de Chevalier). Os incentivadores Paschoal Carlos Magno e Assis Chateaubriand. Sua lendária parceria com o cineasta, também baiano, Glauber Rocha, que o elevou ao posto inamovível de ícone do Cinema Novo ao encarnar o cangaceiro Corisco no filme “Deus e o Diabo na Terra do Sol” (1964). Outros longas-metragens de que participou, como “O Pagador de Promessas” (1962), de Anselmo Duarte, “Os Deuses e os Mortos” (1970), de Ruy Guerra, e “São Bernardo” (1972), de Leon Hirszman. Peças emblemáticas que encenou, como “Um Grito Parado no Ar”, de Gianfrancesco Guarnieri, em 1973, que serviu como símbolo de resistência à política ditatorial militar vigente à época, e “O Jardim das Cerejeiras”, de Anton Tchekhov, montada no Teatro dos Quatro, no Rio de Janeiro, em 1989. Também é abordado o seu longevo e feliz casamento de mais de 60 anos com a atriz “de olhos verdes” Martha Overbeck.
Othon Bastos tem o frescor dos iniciantes e a majestade dos intérpretes consagrados
A direção de Flávio Marinho apostou cegamente nos vultosos carisma e comunicabilidade do ator, deixando-o bem à vontade sobre a ribalta, com as marcações distribuídas com equanimidade cumpridas, resultando em um quadro teatral sólido e legítimo. Uma de suas mais eficientes sacadas foi a escalação da atriz Juliana Medella para representar a figura da “Memória” a quem Othon recorre vez ou outra, conferindo à montagem robusta dinâmica interativa (sua participação não subverte de modo algum o formato original de monólogo). Juliana, também diretora assistente do espetáculo, indicada ao Prêmio de Melhor Atriz Coadjuvante no FITA 2024, causa-nos a melhor das impressões pela sua postura cênica, ótima voz e notável expressividade corporal. Othon Bastos, indicado ao Prêmio Shell pelo júri do Rio de Janeiro e grande homenageado no FITA 2024, ilumina todo o teatro a partir do momento em que dá o seu primeiro passo no tablado e emite a primeira sílaba do seu texto. Othon, com seu talento de gigantes dimensões, que transcende os limites do ponderável, não nos permite tirar o olhar de sua envolvente imagem um único segundo, reafirmando a sua condição inconteste de artista universal, moldado para ser aplaudido em qualquer plateia mundo afora. Sua voz poderosa e articulada atinge todas as camadas e etapas emotivas ambicionadas. Seus pendores para a graça e a dramaticidade são igualmente irresistíveis. Com vitalidade extraordinária, Othon Bastos tem o frescor dos iniciantes e a majestade dos intérpretes consagrados. A direção de arte de Ronald Teixeira tangencia o barroco com os seus detalhes que nos fazem viajar pelo universo habitado por Othon Bastos. Esta agradável imersão nos é proporcionada por três painéis de tecidos nos quais se veem molduras de quadros de formas e tamanhos variados com imagens de diversas fases da vida e carreira do ator, além de alguns signos (a grande foto central de Corisco encimada pelos olhos verdes de Martha Overbeck ao lado de um ramalhete de cerejeiras nos arrebata pela sua força). Ronald se vale ainda de mobiliários de madeira e acrílico que servem a contento a todas as solicitações da narrativa. A delicadíssima trilha sonora, afinada com o roteiro, coube a Liliane Secco, que não nos poupou de sua conhecida sensibilidade ao realçar momentos-chaves da produção, entregando-nos melodias baseadas nos sons de teclados, cordas e percussão, acrescidas por um ritmo regional empolgante. A iluminação de Paulo César Medeiros avoluma a qualidade técnica da encenação ao utilizar com proficiência dois tripés de pequenos spots, um de cada lado do palco ao fundo, um conjunto de refletores superiores atrás e dois outros à frente em campos opostos no nível do piso. Com focos estudados, planos abertos valorosos e texturas pontuais em azul, Paulo exerce com louvor a sua missão. O visagismo de Fernando Ocazione e a alfaiataria de Macedo Leal, com destaque para o vistoso blazer marrom de Othon, somam-se à sua elegância natural. “Não Me Entrego, Não!”, com consultoria artística de José Dias, consolida-se como uma joia recente no cenário teatral brasileiro, joia que será lembrada infinitamente por todos que lhe assistiram, testemunhas vivas da consistente e verdadeira vocação de um ator para o seu ofício, Othon Bastos, que, do sertão ao jardim das cerejeiras, nunca se entregou, mas que no palco mergulha fundo como poucos tiveram a coragem de fazê-lo. Othon Bastos, presente!








