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Blog do Paulo Ruch

  • “Do sertão ao jardim das cerejeiras, com emoção e humor, Othon Bastos, um de nossos grandes intérpretes, divide com o público a sua linda história e a das Artes no país.”

    outubro 30th, 2024
    Em seu primeiro monólogo, Othon Bastos conquista o público com as tocantes e divertidas passagens de sua riquíssima trajetória pessoal e profissional/Foto: Beti Niemeyer

    Othon Bastos, em sua primeira montagem solo, narra com entusiasmo e graça a sua linda e inacreditável história de vida

    Não são todos os dias em que o público de teatro brasileiro tem a rica oportunidade de assistir a um de nossos mais celebrados intérpretes, com vitoriosa trajetória no cinema, nos palcos e na TV, narrar com entusiasmo e graça sua linda e inacreditável história de vida, que se mistura com a das Artes no país, em cerca de uma hora e meia de espetáculo. É o que faz generosamente o baiano de Tucano, figura exponencial do Cinema Novo, Othon Bastos, com os seus admiráveis 91 anos de idade e 73 de carreira, em seu primeiro monólogo, escrito e dirigido por Flávio Marinho, “Não Me Entrego, Não!”, sucesso absoluto na programação cênica atual.

    Com bastante humor, emoção e poesia, tudo o que há de mais relevante na trajetória do ator está presente

    A belíssima dramaturgia de Flávio Marinho, respeitado profissional com muitos êxitos em sua bagagem, foi sendo construída ao lado do ator através de longas conversas e profunda pesquisa, inclusive se utilizando de farto material escrito pelo próprio reflexo dos pensamentos que nortearam suas vivências. Só mesmo um autor experiente e habilidoso como Flávio poderia ser capaz de condensar nos limites de um texto teatral os inúmeros e importantes episódios que marcaram os caminhos do garoto que na infância lia para a sua turma de colégio um poema de Olavo Bilac. Sabiamente, o dramaturgo, indicado tanto como autor quanto como diretor ao Prêmio FITA 2024 (Festival Internacional de Teatro de Angra), a fim de abarcar todos os elementos atinentes ao percurso trilhado pelo protagonista, dividiu a peça em blocos temáticos: trabalho, amor, teatro, cinema e política. Nada escapou à sua visão acurada. Com bastante humor, emoção e poesia, tudo o que há de mais relevante na história do rapaz que almejava ser dentista está presente. No trabalho, seus primeiros parceiros artísticos foram Walter Clark (futuro produtor e executivo da Rede Globo) e Roniquito (Ronald de Chevalier). Os incentivadores Paschoal Carlos Magno e Assis Chateaubriand. Sua lendária parceria com o cineasta, também baiano, Glauber Rocha, que o elevou ao posto inamovível de ícone do Cinema Novo ao encarnar o cangaceiro Corisco no filme “Deus e o Diabo na Terra do Sol” (1964). Outros longas-metragens de que participou, como “O Pagador de Promessas” (1962), de Anselmo Duarte, “Os Deuses e os Mortos” (1970), de Ruy Guerra, e “São Bernardo” (1972), de Leon Hirszman. Peças emblemáticas que encenou, como “Um Grito Parado no Ar”, de Gianfrancesco Guarnieri, em 1973, que serviu como símbolo de resistência à política ditatorial militar vigente à época, e “O Jardim das Cerejeiras”, de Anton Tchekhov, montada no Teatro dos Quatro, no Rio de Janeiro, em 1989. Também é abordado o seu longevo e feliz casamento de mais de 60 anos com a atriz “de olhos verdes” Martha Overbeck.

    Othon Bastos tem o frescor dos iniciantes e a majestade dos intérpretes consagrados

    A direção de Flávio Marinho apostou cegamente nos vultosos carisma e comunicabilidade do ator, deixando-o bem à vontade sobre a ribalta, com as marcações distribuídas com equanimidade cumpridas, resultando em um quadro teatral sólido e legítimo. Uma de suas mais eficientes sacadas foi a escalação da atriz Juliana Medella para representar a figura da “Memória” a quem Othon recorre vez ou outra, conferindo à montagem robusta dinâmica interativa (sua participação não subverte de modo algum o formato original de monólogo). Juliana, também diretora assistente do espetáculo, indicada ao Prêmio de Melhor Atriz Coadjuvante no FITA 2024, causa-nos a melhor das impressões pela sua postura cênica, ótima voz e notável expressividade corporal. Othon Bastos, indicado ao Prêmio Shell pelo júri do Rio de Janeiro e grande homenageado no FITA 2024, ilumina todo o teatro a partir do momento em que dá o seu primeiro passo no tablado e emite a primeira sílaba do seu texto. Othon, com seu talento de gigantes dimensões, que transcende os limites do ponderável, não nos permite tirar o olhar de sua envolvente imagem um único segundo, reafirmando a sua condição inconteste de artista universal, moldado para ser aplaudido em qualquer plateia mundo afora. Sua voz poderosa e articulada atinge todas as camadas e etapas emotivas ambicionadas. Seus pendores para a graça e a dramaticidade são igualmente irresistíveis. Com vitalidade extraordinária, Othon Bastos tem o frescor dos iniciantes e a majestade dos intérpretes consagrados. A direção de arte de Ronald Teixeira tangencia o barroco com os seus detalhes que nos fazem viajar pelo universo habitado por Othon Bastos. Esta agradável imersão nos é proporcionada por três painéis de tecidos nos quais se veem molduras de quadros de formas e tamanhos variados com imagens de diversas fases da vida e carreira do ator, além de alguns signos (a grande foto central de Corisco encimada pelos olhos verdes de Martha Overbeck ao lado de um ramalhete de cerejeiras nos arrebata pela sua força). Ronald se vale ainda de mobiliários de madeira e acrílico que servem a contento a todas as solicitações da narrativa. A delicadíssima trilha sonora, afinada com o roteiro, coube a Liliane Secco, que não nos poupou de sua conhecida sensibilidade ao realçar momentos-chaves da produção, entregando-nos melodias baseadas nos sons de teclados, cordas e percussão, acrescidas por um ritmo regional empolgante. A iluminação de Paulo César Medeiros avoluma a qualidade técnica da encenação ao utilizar com proficiência dois tripés de pequenos spots, um de cada lado do palco ao fundo, um conjunto de refletores superiores atrás e dois outros à frente em campos opostos no nível do piso. Com focos estudados, planos abertos valorosos e texturas pontuais em azul, Paulo exerce com louvor a sua missão. O visagismo de Fernando Ocazione e a alfaiataria de Macedo Leal, com destaque para o vistoso blazer marrom de Othon, somam-se à sua elegância natural. “Não Me Entrego, Não!”, com consultoria artística de José Dias, consolida-se como uma joia recente no cenário teatral brasileiro, joia que será lembrada infinitamente por todos que lhe assistiram, testemunhas vivas da consistente e verdadeira vocação de um ator para o seu ofício, Othon Bastos, que, do sertão ao jardim das cerejeiras, nunca se entregou, mas que no palco mergulha fundo como poucos tiveram a coragem de fazê-lo. Othon Bastos, presente!

  • “Um dos amores mais lindos e ‘proibidos’ do cinema mundial foge das montanhas, é levado aos palcos por Moacyr Góes, e emociona com a atuação vigorosa de Marcéu Pierrotti e Júlio Oliveira.”

    setembro 14th, 2024
    Marcéu Pierrotti e Júlio Oliveira vivem dois cowboys norte-americanos que se apaixonam no alto da montanha de Brokeback enquanto pastoreavam ovelhas/Foto: Tercianne Melo

    Após assistir à montagem londrina de “Brokeback Mountain”, adaptada de um conto que originou o grande filme homônimo, o ator Marcelo Brou decide montá-la no Brasil em parceria com o respeitado diretor Moacyr Góes

    Em 09 de dezembro de 2005 era lançado nos cinemas dos Estados Unidos um filme que abalaria o “establishment” da indústria de sonhos. O longa-metragem dirigido pelo taiwanês Ang Lee, “O Segredo de Brokeback Mountain” (“Brokeback Mountain”), vencedor de 3 Oscars, mas não o de “Melhor Filme” como se esperava, estrelado por Heath Ledger e Jake Gyllenhaal, com roteiro adaptado do conto da jornalista e escritora americana com ascendência franco-canadense Annie Prouxl (o conto, que integra a coletânea “Close Range”, foi lançado originalmente em 1997 pela revista “New Yorker”), subverteu a sacralidade de um dos gêneros cinematográficos mais admirados pelos estadunidenses, o western, ao retratar o amor homoafetivo de dois cowboys do interior do país na década de 60. Sua trajetória pelas salas de cinema de outras nações foi marcada por polêmicas e censuras, mas a sua aura de “grande filme” nunca foi maculada. O ator Marcelo Brou, ao assistir à montagem de “Brokeback Mountain” no West End londrino, escrita pelo americano Ashley Robinson, decidido a encená-la no Brasil, contatou o prestigiado diretor Moacyr Góes e todo o processo de realização artística de seu projeto foi levado adiante.

    Sem perder o ótimo apelo ficcional, a peça de Ashley Robinson aborda temas que afligem a sociedade há tempos, como a homofobia e o machismo, mas também acentua a imperiosidade do desejo e amor entre os indivíduos, não se importando com os seus gêneros

    A peça “O Segredo de Brokeback Mountain”, desde agosto em cartaz no Rio de Janeiro, inédita no Brasil, com tradução exemplar de Miguel Góes, passa a ser uma parada obrigatória para o público de teatro, independente de quem assistiu ao filme ou não, por uma multiplicidade de fatores, que incluem a rica e corajosa dramaturgia, a direção experiente de Moacyr, a entrega e talento de seus protagonistas, Marcéu Pierrotti (Ennis Del Mar) e Júlio Oliveira (Jack Twist), todo o elenco que colabora gloriosamente para o êxito da obra e as lindíssimas e tocantes músicas do cantor e compositor inglês Dan Gillespie Sells. Dinâmica, envolvente, emocionante e cheia de reviravoltas, a narrativa desenvolvida por Ashley Robinson, ao nos contar a história desses dois vaqueiros de comportamentos opostos que se veem obrigados a ficarem sós no topo de uma montanha com o objetivo de pastorear ovelhas e se apaixonam, aborda, sem perder seu ótimo apelo ficcional, temas que afligem a sociedade há tempos e que merecem todo e qualquer tipo de análise que nos leve à mais ampla reflexão, como homofobia, violência infantil, machismo, desrespeito às diferenças e o patriarcalismo. O autor, ciente da importância dos assuntos levantados pelo conto de Annie Prouxl, pôs em seu texto com notável destreza a multifacetada personalidade humana com todos os seus erros, intolerâncias, preconceitos, negações e hipocrisias, mas também acentuou a imperiosidade do desejo e do amor entre os indivíduos, não se importando com os seus gêneros. Tudo muito bem capturado pelo tradutor Miguel Góes.

    Moacyr Góes cria uma atmosfera bastante familiar ao tempo e espaço em que se passam os episódios do espetáculo, enriquecendo-o ao privilegiar a música ao vivo

    Moacyr Góes, insigne diretor responsável por clássicos do teatro brasileiro, como “Escola de Bufões” e “Os Gigantes da Montanha”, criou uma atmosfera bastante familiar ao tempo e espaço em que se passam os episódios determinantes das vidas de Ennis e Jack, apostando em uma exponencial movimentação dos atores com diferenciadas marcações na ribalta, utilizando-se de acessórios de cenário, como toras longas e finas de madeira, para demarcarem situações e lugares específicos. Outros acertos do encenador foram cruciais para o resultado vitorioso da obra: a presença dos excelentes músicos João Pedro Moschkovic (guitarra) e Miguel Góes (violão) tocando ao vivo no palco, a também onipresença do ator Marcelo Brou, como Ennis mais velho, contemplando o desenrolar da peça com as mais sutis reações, como se estivesse reavaliando o seu passado, e as intervenções musicais da atriz Catarina Marcato com a sua bela voz em momentos estratégicos. Há que se elogiar também o cuidado com que Moacyr, sem descambar para as vias mais fáceis, dirigiu as cenas de afeto e sexo entre os personagens.

    Marcéu Pierrotti e Júlio Oliveira formam uma dupla entrosadíssima, confirmando o acerto de suas escalações, sendo acompanhados por um time de atores que se empenha com notável lealdade ao texto

    Marcéu Pierrotti, com o seu porte, estampa e talento, passa-nos uma pujante presença em cena, na qual são claramente observadas as suas bem-sucedidas intenções em preencher com todos os elementos à sua disposição, inclusive nas linguagens corporal e vocal, a figura do vaqueiro arredio, tosco, monossilábico e viril. O ator desenha com sucesso o seu personagem com a masculinidade padronizada que os códigos sociais exigem, transformando-se pouco a pouco, e com isso demonstrando novas camadas emotivas à medida que os acontecimentos se sucedem. Júlio Oliveira acompanha seu parceiro na mesma intensidade de força dramática, impondo-se positivamente na trama com o seu Jack Twist mais extrovertido, resoluto, questionador e afirmativo. Ao contrário de Ennis, o papel de Júlio lhe permite ostentar uma masculinidade menos normativa, abrindo-lhe espaços para ostentar emoções e sensibilidades que ao final acabam por seduzir de maneira irreversível o seu objeto de paixão. O intérprete nos garante ainda um terno instante ao entoar uma bonita e melancólica canção. Enfim, uma dupla entrosadíssima em todos os aspectos, confirmando o alto acerto de suas escalações. Os dois são acompanhados por um time de atores que se empenhou com notável lealdade à proposta do texto de Ashley Robinson. Além de Marcelo Brou e Catarina Marcato já mencionados (Catarina também interpreta Alma Beers, a esposa de Ennis, com o choque inicial, a passividade e o enfrentamento à traição com os tons exatos), destacam-se Eduardo Rieche (defendendo três personagens, revela bem-vinda versatilidade; como Aguirre, o empregador dos caubóis, mostra dureza e viés preconceituoso; como Bill, o novo marido de Alma, timidez e um certo constrangimento; e como o pai de Jack, uma mágoa avassaladora na qual se esconde uma profunda decepção); Arlete Heringer, além da garçonete, apresenta-nos com absoluta verdade a dor incontida e a generosidade da mãe de Jack) e Ana Elisa Schumacher, como a mulher de Jack, Laureen, demonstra com altivez a comoção da esposa que sofrera um enorme revés.

    O grande segredo de Ennis Del Mar e Jack Twist

    A encantadora iluminação de Adriana Ortiz busca uma permanente suavidade, jamais se excedendo, trilhando caminhos que se alinhem com o realismo sem no entanto preterir matizes como o azul, o azul-esverdeado e o lilás, conferindo poesia às cenas. A direção musical de Miguel Góes é magnífica, aproximando o público da história e fazendo com que as melodias e os acordes instrumentais sejam personagens relevantes da encenação. Ana Elisa Schumacher fez um belo, pesquisado e fiel trabalho com os figurinos, ambientando-nos fortemente com o universo country, simbolizados nas diversas jaquetas, camisas xadrezes, peças jeans, t-shirts, botas e chapéus. Angela de Castro executou uma admirável preparação vocal do elenco. “O Segredo de Brokeback Mountain” é um espetáculo que já começa vitorioso com a bravura de seu idealizador, Marcelo Brou, em encenar um texto que fala do amor entre iguais e todo o preconceito que o cerca em uma comunidade opressora, alcançando outras tantas vitórias a partir do momento em que foi ganhando vida no palco. Não há como sair do teatro sem se comover com a história desses dois homens que tiveram toda uma sociedade contra eles. O amor que veio do alto da montanha de Brokeback não precisou ser consertado, sendo sustentado porque foi infinitamente amado. Este é o grande segredo de Ennis Del Mar e Jack Twist.

                                             

  • Como mãe e filho, Natália Lage e Caio Manhente, brilhantes em cena, vestem os mais belos e tristes tricôs em um drama familiar que não ousa dizer o seu nome.”

    agosto 14th, 2024
    Caio Manhente e Natália Lage interpretam filho e mãe que foram separados de forma trágica na peça idealizada por Ana Beatriz Nogueira/Foto: Guilherme Scarpa

    Um espetáculo que se arrisca a abordar o que para muitos é a maior das dores humanas, a perda de um filho

    Perde-se a conta de quantas são as dores possíveis do ser humano. Condição inescapável e indissociável da existência do indivíduo, a dor, em sua multiplicidade de faces e diferentes níveis de intensidade, não tem hora e dia marcados para chegar. A imprevisibilidade é uma de suas mais cruéis características. Elucubra-se, talvez de forma leviana, a respeito de qual seja a mais insuportável para o homem. Curiosamente, a humanidade parece se aproximar de uma improvável certeza ao determinar que a perda de um filho seja a mais devastadora das dores, utilizando como inconteste argumento a inversão da “ordem natural da vida”. A despeito disso, a personalidade espinhosa deste tema, evitável para muitos, um tabu para tantos outros, não inibiu o premiado dramaturgo, jornalista e escritor paulista Sérgio Roveri em formalizá-lo teatralmente no comovente, sensível e poético espetáculo “Ensaio Para Um Adeus Inesperado”, uma idealização de Ana Beatriz Nogueira, também codiretora com Lena Brito e parceira de Zélia Duncan em sua trilha sonora. Sérgio foi ainda, destemidamente, mais além, ao inserir em seu texto um elemento carregado de altíssima tragicidade, pisando em um terreno com visíveis riscos, passível de rejeição, o suicídio.

    Sérgio Roveri, o autor, possui notável apreço pelas palavras e construções frasais enquanto Ana Beatriz Nogueira e Lena Brito, diretoras, logram um resultado de forte impacto cênico

    O autor, com notável apreço pelas palavras e construções frasais com toda a beleza que lhes é inerente, optou pela adoção de monólogos, cujas estruturações das falas de seus personagens passeiam com desenvoltura pelos campos narrativo, descritivo (inclusive com rubricas), memorialista e confessional, tornando a sua dramaturgia clara, limpa, precisa e com grande inteligibilidade para o público. Sérgio, ciente da aspereza do assunto de que trata, uma mãe que nos relata a dor da perda de um jovem filho de 22 anos que ceifou a própria vida após um prosaico café da manhã de uma segunda-feira e como teve que lidar com imensurável luto, consegue com indiscutível habilidade torná-lo menos pesaroso, lançando mão de instrumentos que o suavizam, ornando-o com filigranas poéticas e até mesmo descontraídas e com um reservado humor. As diretoras Ana Beatriz Nogueira e Lena Brito realizaram um primoroso e afiado trabalho com os seus dois intérpretes, Natália Lage e Caio Manhente, mantendo-os no palco durante todo o tempo enquanto cada um desenvolve o seu monólogo como se fosse uma franca conversa com a plateia, um necessário desabafo, assumindo ambos, como já fora dito, vários estilos de comunicabilidade. A ausência física do filho fora severamente acentuada por não haver quaisquer tipos de interação, mesmo transcendental, entre esses dois seres tão íntimos, havendo no máximo um olhar de uma das partes. Percebe-se, também, uma nítida distinção de marcações entre os protagonistas, com Caio tendo plena liberdade de movimentos ao passo que Natália defende o seu papel em posição sentada, impávida, propositalmente “presa” em suas lembranças. Ana Beatriz e Lena logram um resultado de forte impacto cênico com sua plasticidade estética inebriante em que não faltaram reverências calculadas ao silêncio e à sílaba.

    Natália Lage e Caio Manhente, que têm em comum o início de suas carreiras na infância, revelam à plateia impressionante maturidade artística ao defenderem personagens tão complexos

    Natália Lage, atriz niteroiense reconhecida pelo seu talento desde que iniciou a sua bem-sucedida carreira na infância, revela uma absoluta maturidade artística ao abraçar com convicção e elevada credibilidade uma personagem com tantas nuances emocionais e existenciais, marcada indelevelmente pela mais profunda dor. Natália, com descomunal domínio de seu corpo, observado anteriormente, assim como o cuidadoso controle de sua voz, exprime as mais diversas sensações da mãe despedaçada em um equilíbrio assaz delicado no qual convivem a sobriedade e a contenção aparentes com uma ebulição de sentimentos contraditórios e confusos guardados em seu íntimo na iminência de explodir. Uma atuação admiravelmente segura e tocante. Caio Manhente, carioca, acostumado ao sucesso desde muito cedo, assim como a sua colega de cena, como o filho cujo nome não se sabe, dá um salto qualitativo em sua jornada artística de dimensões inalcançáveis, causando as mais positivas impressões em quem fora lhe assistir. Sua bela maturidade interpretativa também nos é ofertada das mais distintas formas, com ótimos usos de seus materiais de trabalho, corpo e voz, haja vista que as demandas emocionais que lhe são exigidas pela complexidade de seu papel são inegavelmente difíceis. Sua performance coroada de riquezas lhe garante um lugar especial na galeria dos mais talentosos e sensíveis atores de sua geração.

    Com figurinos deslumbrantes de Analu Prestes e uma linda versão de Zélia Duncan para “Lanterna dos Afogados”, “Ensaio Para Um Adeus Inesperado” é uma peça que toca fundo nas emoções mais recônditas do público com as suas mensagens

    Os figurinos de Analu Prestes, respeitada profissional da área, também atriz e artista plástica, são incrivelmente lindos, inseridos sabiamente no contexto cênico. Analu, inspiradíssima, trajou os protagonistas com casacos largos de tricô (vermelho forte para Natália e em tons mostarda para Caio), cujos efeitos estéticos são deslumbrantes (maravilhosa criação de Ticiana Passos). Para a atriz, Analu ainda reservou uma ampla saia preta que se espraia pelo tablado e para o seu companheiro de peça calça e tênis pretos. De maneira bastante criativa, para o cenário, foi buscada uma conexão com o figurino, materializada em uma extensa faixa de tricô que se inicia no casaco da mãe, atravessa o palco e é usada por Caio de diferentes modos. Encarregado pela iluminação, Paulo César Medeiros privilegiou o uso de um número reduzido de spots, em lugares pré-determinados, que garantiram focos nos intérpretes com magníficos resultados para a montagem. Paulo se esmerou em construir com as suas luzes um universo mais intimista que conversasse com propriedade com a história que nos é contada. A elegante e sedutora trilha sonora conta com a contribuição valorosa de uma aclamada intérprete da MPB, Zélia Duncan, que a divide com Ana Beatriz Nogueira. A trilha, com a bem-vinda direção musical e arranjos de Léo Brandão, é enriquecida em momentos pontuais por bonitos acordes de violoncelo e uma emocionante e linda versão de Zélia, com sua voz grave inconfundível, para o clássico dos Paralamas do Sucesso “Lanterna dos Afogados”. “Ensaio Para Um Adeus Inesperado” é uma peça emocionante, pungente, com infindas possibilidades de tocar fundo nas emoções mais recônditas do público, dentre tantas razões, pelas suas mensagens de libertação, redenção e superação humanas, mostrando-nos que a vida, apesar de ser um doloroso ensaio em muitas ocasiões, pode ser também a oportunidade para uma grande e vitoriosa estreia.

  • “Com uma atuação impactante, Leonardo Netto se lança sem medo em uma guerra desigual contra a homofobia na sociedade moderna, fazendo a mesma pergunta que os não ignaros se fazem: – Por quê?”

    julho 31st, 2024
    Leonardo Netto em cena no seu premiado monólogo “3 Maneiras de Tocar no Assunto”/Foto: Dalton Valerio

    O tema “homofobia” é colocado sobre a mesa e discutido seriamente por Leonardo Netto em três solos curtos na peça de sua autoria “3 Maneiras de Tocar no Assunto”

    Há assuntos que devem obrigatoriamente ser colocados sobre a mesa e serem discutidos com seriedade em uma coletividade organizada, como a homofobia e todas as outras formas de fobia quanto à orientação sexual e identidade de gênero de uma pessoa. Por muitos anos, essas pautas foram deixadas de lado no Brasil, pois não interessavam aos segmentos mais conservadores da sociedade, incluindo Poderes como o Executivo e o Legislativo. O resultado de tanta omissão e preconceito foi a triste posição do país em primeiro lugar entre aqueles que mais matam populações LGBT no mundo. Recentemente, alguns avanços foram observados graças à ingerência do Poder Judiciário, na figura do Supremo Tribunal Federal (STF), em prol dessas minorias carentes de quase 70 direitos previstos na Constituição Federal. Partindo desse deplorável quadro de descaso com as diferenças, em particular com os homossexuais, o ator, diretor e dramaturgo niteroiense Leonardo Netto se debruçou com absoluta propriedade e entrega na construção de uma narrativa que abordasse com legitimidade este tema tão relevante e intrínseco ao comportamento humano, no monólogo “3 Maneiras de Tocar no Assunto”, estrelado por ele próprio com a direção de Fabiano Dadado de Freitas. A avassaladora e premiadíssima montagem, vencedora dos prêmios Cesgranrio, APTR-RJ e Cenym de Teatro Nacional, que desde 2019 vem singrando uma exitosa trajetória pelos palcos brasileiros, contém um bem estruturado arco dramatúrgico dividido em três solos curtos que apontam as instâncias “A Escola”, “A Lei” e “O Estado”, nominados respectivamente “O homem de uniforme escolar”, “O homem com a pedra na mão” e “O homem no Congresso Nacional”, representados com vultosa significância, seguindo-se a ordem, por casos reais, sendo alguns fatais, de alunos que sofreram bullying escolar; pela “Revolta de Stonewall”, quando em 28 de junho de 1969, em uma boate de Nova York, “Stonewall Inn”, a comunidade LGBT resistiu bravamente aos ataques sofridos por forças policiais, o que fez com que esse dia se tornasse um marco histórico para os grupos que a compõem, transformando-se no “Dia Internacional do Orgulho LGBTQIA+”; e nas falas e discursos de um deputado ativista gay na tribuna da Câmara nacional, abertamente inspirados em diversas explanações do ex-deputado federal Jean Wyllys.

    Leonardo Netto, em atuação verdadeira e emocionante, enfrentou com múltiplos méritos os desafios que lhe foram propostos pelo seu texto

    O diretor Fabiano Dadado de Freitas soube com louvável ciência equalizar para o público, respeitando-se o nível de importância de cada um, os curtos solos ao seu dispor, imprimindo-lhes com grande adequação as camadas linguísticas solicitadas pelo autor, com um proposital didatismo no primeiro, uma carga emocional mais intensa no segundo, com alguns momentos de ludicidade e liberdade ficcional, e uma coloração com tintas mais inflamadas nas mensagens explícitas do terceiro. Fabiano se utilizou com visível sucesso de imagens projetadas em um telão, em sua maioria de arquivo, com inegável valor para a História, como os registros da “Revolta de Stonewall”, uma jovem e linda Judy Garland cantando e manchetes estarrecedoras de impressos que disseminavam o ódio e a segregação dos homossexuais, além do anúncio da introdução dos solos e suas consequências. O encenador ofertou ao seu artista uma ampla paleta de possibilidades de ocupação espacial, assegurando-lhe interações produtivas tanto com as projeções quanto com os poucos elementos do cenário, mas principalmente com os espectadores. Leonardo Netto, um intérprete com profundo conhecimento das engrenagens teatrais, admiravelmente convicto de suas responsabilidades artísticas, parece-nos um audaz soldado em um campo de batalha, esquivando-se de cada mina que lhe fora colocada pelo inimigo, entregando-se de peito aberto a uma luta aparentemente inglória, mas que, com persistência, resiliência e sabedoria pode ser vencida. Face a esta alvissareira impressão, tem-se o melhor dos corolários, ou seja, a de que Leonardo, com seu elevado talento, enfrentou com múltiplos méritos os desafios que lhe foram propostos pelo seu texto, transmitindo-nos com imensa verdade e larga emoção as mensagens denunciatórias entranhadas no cerne dramatúrgico. Seu magnífico trabalho é completo por uma direção de movimento extraordinária de Marcia Rubin que, com sensibilidade, primor e inspiração, esmiuçou as infindas potencialidades expressivas do material humano, com deslocações vigorosas, danças, saltos e desenhos dos braços no ar.

    Um monólogo que toca o dedo na ferida, sendo um aviso eloquente para a sociedade do real perigo que a adoece

    Mais um ponto alto da peça é a iluminação de Renato Machado, um experiente profissional que sabe, como poucos, identificar o que a cena pede em termos de ambientação. Renato generosamente orna os quadros cênicos com exemplar variedade de técnicas, seja em feixes que se “abrem” em vários outros, surtindo um belo efeito, seja na impressionante exploração de focos sobre o rosto do ator e deslumbrante fruição das sombras. Luíza Fardin, a quem coube o figurino, decidiu pela sobriedade sem prescindir da elegância, trajando o protagonista com um conjunto de terno, calça, camisa e gravata em tons de grafite mais claros ou escuros. Elsa Romero, cenógrafa, apostou no pragmatismo ao distribuir pela ribalta dois praticáveis vazados, um maior e outro menor, com uma bacia d’água sobre um deles, que servem funcionalmente muito bem às necessidades do intérprete. Rodrigo Marçal e Leonardo Netto conceberam uma trilha sonora diversificada e envolvente que se alterna entre o potente (com riffs de “Smells Like Teen Spirit”, do Nirvana), o pop dançante, a balada/rock e o romântico ingênuo na doce voz de Judy Garland, agradando em cheio aos que estimam o ecletismo musical. Tais escolhas se somaram valorosamente às qualidades da peça. “3 Maneiras de Tocar no Assunto” atende a um dos princípios basilares da arte teatral, que é a de ser um instrumento vivo e poderoso de transformação social e cultural. O monólogo criado e encenado por Leonardo Netto toca o dedo na ferida, brada, alerta-nos, reivindica, briga com quem deve se brigar, sendo um aviso eloquente para a sociedade do perigo real que a adoece. Tudo isso com apenas três maneiras de tocar no assunto.                

  • “Em atuação emocionada, intensa e visceral, Isabel Teixeira dá voz ao último e inédito desabafo textual de uma grande dramaturga do nosso país, Jandira Martini.”

    julho 22nd, 2024
    Isabel Teixeira é a protagonista do último texto inédito da dramaturga, atriz e diretora Jandira Martini/Foto: Flora Negri

    Marcos Caruso e Jandira Martini comemoram sim a rara cumplicidade artística que atravessou quatro décadas

    Este ano seriam comemorados os 40 anos de parceria profissional de Marcos Caruso e Jandira Martini, dois consagrados autores, atores e diretores brasileiros, donos de alguns dos maiores sucessos teatrais já vistos, como “Sua Excelência, O Candidato”, “Porca Miséria” e “Operação Abafa”, além de roteiros para o cinema e televisão, como a novela da extinta Rede Manchete, “A História de Ana Raio e Zé Trovão”. Todavia, Marcos e Jandira comemoram sim a rara cumplicidade artística que atravessou quatro décadas ao ser encenado o último e inédito texto da dramaturga falecida em janeiro passado, “Jandira: – Em Busca do Bonde Perdido”, estrelado por Isabel Teixeira. Nada mais justo e coerente que a Mesa2 Produções e os filhos da atriz convidassem o amigo de todas as horas para dirigir este material corajoso e pessoal carregado dos mais profundos e variados sentimentos de um ser humano que teve o diagnóstico de uma agressiva doença.

    Uma dramaturgia que aborda a iminência da finitude do homem com a mais bonita das intenções poéticas e admiráveis bravura e exposição individual

    Como primeira impressão, o espectador de teatro poderia imaginar de que se trataria de uma dramaturgia pesada, sombria e pessimista. Não, Jandira Martini, acostumada a criar comédias inteligentes e escancaradas, não faria isso com o seu público. Há em seu texto a carga dramática inevitavelmente demandada pela situação excepcional por que passa, entretanto, sua mente inventiva abriu as portas para que o humor ocupasse o seu devido espaço, seja em tom de autoironia ou nas observações sarcásticas que elabora com o que acontece ao seu redor, como na dura rotina de procedimentos terapêuticos aos quais tinha que se submeter, a mudança na aparência, os sintomas que a perturbavam e o seu contato com os médicos e outros pacientes. A peça com certeza se encaixa no gênero da autoficção, visto que a plateia é levada com muita naturalidade às rememorações de Jandira de sua infância em Santos, São Paulo, cidade em que nasceu, de suas andanças e brincadeiras fantasiada pelos blocos carnavalescos, de seus amigos que já não estão mais presentes, além da imagem idílica da praia, dos bondes a circular pelas vias urbanas santistas e a piada inesquecível de um ator local em um espetáculo. Todo esse processo que aborda a iminência da finitude do homem é azeitado com a mais bonita das intenções poéticas, eivado de admiráveis bravura e exposição individual, mesmo que a defesa da privacidade lhe fosse uma característica, fazendo com que a sua narrativa mexa inexoravelmente com as sensibilidades alheias.

    Isabel Teixeira é daquelas atrizes ímpares que possuem as suas emoções na superfície da pele contagiando a alma de todos que lhe assistem

    Para o diretor Marcos Caruso esta deve ter sido, sem sombras de dúvida, uma das missões mais desafiadoras de toda a sua extensa e bem-sucedida carreira. Marcos não poderia ser tomado, assumindo potenciais riscos, de parcialidades e freios com objetivos de preservar a imagem de sua amiga, parceira e colega de ofício, justificáveis pela própria natureza do relacionamento, devendo imperativamente se despir desta roupa que lhe cabe e reverenciar cada linha e intenção deixadas pela autora no calor de suas legítimas emoções, e fora o que de maneira inequívoca o sábio diretor fez. Todo o pungente retrato pintado por Jandira Martini sobre ela mesma está lá, em cima do palco, com todas as dores e risos possíveis, para quem quiser ver e escutar. O encenador tinha à frente a sua protagonista Isabel Teixeira, toda uma ribalta vazia explorável e uma dramaturgia que lhe soava bastante familiar, e o que se logrou fora uma obra com irrepreensíveis precisão, delicadeza e paixão, testemunhadas nas bem executadas transições entre passagens de vida distintas de Jandira, nas emoções com altíssima voltagem extraídas da intérprete, na calculada inserção das músicas em momentos-chaves da peça e na aposta na coloquialidade de sua “personagem” como eficaz canal de interlocução com a plateia. Isabel Teixeira, atriz paulistana com notória respeitabilidade por seus gloriosos anos de trabalho dedicados à arte teatral, com merecidíssima admiração no Brasil pelas suas recentes atuações na TV, enquadra-se naqueles casos em que não conseguiríamos enxergar outra atriz que melhor representasse as vivências da dramaturga que também encantou as pessoas com seus papéis no veículo audiovisual. Já de início, Isabel, com seu rosto expressivo, em especial seus olhos verdes, e poderosa voz, ganha a todos com seus inestimáveis carisma, espontaneidade e comunicabilidade. Todos esses aspectos positivos se somam a tantos outros formadores de seu enorme talento, permitindo-lhe a construção perfeita das diversas personas existentes em uma única colocadas à mostra nas sucessivas fases vividas pela artista/mulher Jandira, seja no ápice da dor ou no êxtase da alegria. Isabel Teixeira é daquelas atrizes ímpares que possuem as suas emoções situadas na superfície da pele, bastando que um simples toque lhes seja dado para que se dissipem maravilhosamente pelo espaço e contagiem a alma de todos que lhe assistem. Aline Meyer ficou encarregada pela instigante e diversificada trilha sonora da encenação, enriquecida por acordes de instrumentos de cordas, rufar de tambores, cantos assemelhados ao gregoriano, marchinha de carnaval e clássicos de Raul Seixas (por sinal, Isabel nos surpreende ao interpretar com categoria e potência um deles). Um valoroso apanhado musical com reconhecida contribuição final para a montagem. Fábio Namatame, figurinista, decidiu pela fluidez com elegância ao trajar Isabel com um comprido casaco nude sobre regata e calça chumbo claro. Renata Melo, a quem coube a direção de movimento, realizou-a com imensa competência, haja vista que nos é apresentada uma Isabel Teixeira em total comunhão e domínio de seu corpo. A dupla Beto Bruel e Sarah Salgado nos ofertou uma bela iluminação, na qual prevaleceram feixes que se encontravam formando geometrias, vindos de spots tanto superiores quanto laterais. Houve, também, a predominância das sombras, resultando na valorização imagética de determinadas cenas. “Jandira – Em Busca do Bonde Perdido” é um espetáculo que resgata com louvor e merecimento a personalidade literária de uma excelsa operária das artes, mesmo que tenha sido no momento mais dolorido de sua caminhada pessoal. O teatro com o seu condão redentor não permitiu que Jandira Martini tampouco o público que sempre a ovacionou perdesse esse valioso e inolvidável “bonde”.      

        

  • “Mateus Solano, um artista que divide lindamente com o público os seus múltiplos protagonismos.”

    julho 9th, 2024
    Em seu primeiro monólogo, Mateus Solano dá vida a Augusto, um homem solitário e sonhador que ganha o seu sustento como figurante de produções audiovisuais
    /Foto: Guto Costa

    Mateus Solano e Miguel Thiré retomam a bem-sucedida parceria vista no grande sucesso teatral “Selfie”, tendo dessa vez a companhia de um outro reconhecido talento, Isabel Teixeira

    Entre 2014 e 2016, Mateus Solano e Miguel Thiré contracenaram em um grande sucesso teatral, a comédia “Selfie”, que jogava luz sobre os desafios enfrentados pela sociedade com as novas tecnologias. Passado tanto tempo, a talentosa dupla está de volta com a peça “O Figurante”, fechando a sua 5ª parceria artística, desta vez com Mateus sozinho no palco, debutando em monólogos, e Miguel na direção. Aliou-se a este par uma profissional com vultosa importância, a atriz, dramaturga e diretora Isabel Teixeira, que o ajudou na construção textual do espetáculo, utilizando-se de seu método “Escrita na Cena”, que consiste no fato do ator ser estimulado, durante exercícios de improvisação, a criar e recriar as suas próprias narrativas, tornando-se também um “autor” no processo do fazer teatral. A este método se juntou uma proposta de linguagem já adotada em “Selfie”, caracterizada pela valorização da essencialidade do intérprete, na qual são exploradas de modo produtivo todas as suas ferramentas vocais e corporais, tendo-se o mínimo possível de acessórios cênicos. O somatório dessas bem-vindas experiências resultou na tocante, divertida e melancólica jornada de Augusto, um homem perseguido pelas inclementes solidão e rotina contemporâneas, cujos únicos sonhos são ainda alimentados em seu trabalho como figurante de produções audiovisuais.

    A peça faz uma denúncia sobre a banalização da invisibilidade do indivíduo usando como símbolo o personagem Augusto, vítima constante desse mal social

    Augusto não é um figurante qualquer. A cada participação diária que lhe surge, uma espécie de sobrevida a sua existência vazia, não importando a função que irá exercer, um porteiro de escola, um garçom ou um sócio de uma empresa, Augusto se dedica à contextualização desse “personagem”, frustrando-se invariavelmente ao se dar conta de sua invisibilidade para os demais em um ambiente hostil, opressor e hierarquizado. Para os dramaturgos, o figurante é um símbolo eloquente da invisibilidade sistêmica e banalizada a que se atribui a tantos indivíduos, aos quais lhes é negada inclusive a sua identidade. A dramaturgia de Isabel, Mateus e Miguel, bem costurada, fluida, com tempos eficientemente definidos, conquista-nos de pronto pelo seu viés humanizado, suas evidentes intenções em imprimir leveza com pitadas de pura comédia a uma situação por si só melancólica, fazendo com que torçamos por esse ingênuo personagem jogado às feras do mundo real.

    Há na performance de Mateus Solano uma sedutora e envolvente influência “clownesca”, circense, digna de gênios do cinema mudo, como Charles Chaplin

    Miguel Thiré, tendo profundo conhecimento das extensas habilidades interpretativas de seu parceiro de longa data, extrai o seu melhor, seja no humor seja no drama, deixando-o inteiro em cena, ofertando-lhe liberdade e lhe permitindo uma ampla interlocução com a plateia. Miguel, comprovando o que defende, soube tratar com inteligência a nudez da ribalta, preenchendo lucidamente seus espaços, privilegiando, pela própria condição de Augusto, mais o seu fundo e as laterais, sem deixar, no entanto, de reconhecer o valor das marcações frontais em situações assaz específicas. Mateus Solano é um ator dotado dos mais exponenciais recursos artísticos, com impressionantes variações faciais e emissões distintas de seu aparelho vocal. O intérprete, extremamente íntimo do palco, tendo uma poderosa cumplicidade com os espectadores, não parecendo ser essa a sua primeira vez em monólogos, encarrega-se de representar com tintas diversas e convincentes os personagens criados na imaginação de Augusto. Como se não bastasse esse maravilhoso “tour de force” cênico, o artista brasiliense pré-gravou as falas dos tipos que fazem parte do universo audiovisual do figurante, como a diretora, a atriz/estrela, o ator principal e o fiscal de figurantes. Há na performance de Mateus uma sedutora e envolvente influência “clownesca”, circense, digna de gênios do cinema mudo, como Charles Chaplin, com a realização mímica de atividades cotidianas que conferem sobremaneira um caráter lúdico à obra. A direção de movimento de Toni Rodrigues é excepcional, brilhante, pois sua reconhecida capacidade em fazer com que os atores descubram os próprios corpos e se movimentem de modo compatível com a persona que vivem foi de encontro a um artista que possui robustas expressividades de sua máquina corporal. Dani Sanchez, responsável pelo desenho de luz, proporciona-nos um belo panorama visual em que prevalece uma suave iluminação de spots superiores mais próxima do tom amarelado, vendo-se também feixes laterais, leds e a incidência de matizes fortes, como o vermelho, o azul e o fúcsia. O desenho de som, a direção musical e a trilha original ficaram a cargo de João Thiré, mostrando-se bastante criativos ao transformar sons do cotidiano em compassos rítmicos. João também disponibilizou melodias (com teclados, bateria) e sonoridades urbanas que contribuem com notado êxito para a ambientação da história e dos conflitos do personagem. Carol Lobato, figurinista, optou com sabedoria pela praticidade e conveniência, ao vestir Mateus com um macacão/terno cor de chumbo que lhe possibilitou a vasta liberdade de movimentos exigida pelo seu papel. “O Figurante” é um espetáculo que, através de três grandes e generosos artistas, Mateus Solano, Isabel Teixeira e Miguel Thiré, consegue nos passar com imensa beleza a valiosa mensagem de que não devemos invisibilizar os Augustos do mundo.

  • “Débora Falabella, uma magistral atriz que veste a sua toga, defende a sua arte e chega sempre em primeiro lugar.”

    junho 17th, 2024

    Em “Prima Facie” Débora Falabella representa uma advogada criminalista bem-sucedida cujos clientes preferenciais são acusados de violência sexual/Foto: Annelize Tozetto

    “Prima Facie”, peça premiada e encenada em vários países, escrita pela australiana Suzie Miller, levanta uma questão que diz muito sobre o Brasil, marcando a estreia de Débora Falabella em monólogos

    Há poucos dias, na calada da noite, em regime de urgência, abrindo-se mão de debates em comissões e audiências públicas, parlamentares brasileiros votaram um projeto de lei de forma simbólica, não nominal, que criminaliza mulheres vítimas de abuso sexual caso interrompam o ciclo gestacional a partir da 22ª semana, equiparando-as a homicidas simples. Este episódio atentatório ao que já estabelece o ordenamento jurídico penal do país atualiza de modo surpreendente o espetáculo que vem causando comoção e furor nas plateias teatrais, “Prima Facie”, da escritora, dramaturga, roteirista e advogada nascida em Melbourne, Austrália, Suzie Miller. Traduzida com magnificência por Alexandre Tenório, dirigida por Yara de Novaes e estrelada por Débora Falabella, debutando em monólogos, a peça, cujo título é uma expressão latina que significa “à primeira vista; um evento considerado verdadeiro com base apenas em sua primeira impressão”, estreou em Sydney em 2019, no West End londrino em 2022 e na Broadway no ano passado, sendo hoje encenada, sempre com sucesso, em diversos países. A premiada montagem, inédita no Brasil, cujo livro homônimo teve a sua primeira publicação em 2019, conta-nos a impressionante trajetória de Tessa Ensler, uma advogada criminalista bem-sucedida que defende com gana acusados de violência sexual e se valendo de brechas jurídicas invariavelmente os leva à absolvição, independente de sua culpabilidade ou não. Autoconfiante, persuasiva, questionadora da verdade absoluta como conceito e defensora implacável da literalidade da lei, Tessa, uma mulher ligada à família, vê o seu mundo pessoal desabar quando ela mesma é vítima de abuso sexual de alguém que lhe é bastante próximo, um colega de trabalho, fazendo-a mudar todas as suas visões preestabelecidas de como se deve lidar com um crime dessa proporção e todos os seus desdobramentos psicológicos, com danos à vida profissional e social da mulher violentada.

    A diretora Yara de Novaes, que mantém uma parceria artística de 20 anos com Débora, realiza um trabalho impactante sob todos os aspectos, cumprindo honrosamente a sua missão

    A dramaturga Suzie Miller com notável destreza estrutura o arco dramático em duas etapas, sendo a primeira voltada para o desempenho excepcional de Tessa nos julgamentos com suas capciosas jogadas jurídicas e sua vida social/afetiva comum, dedicando a segunda ao doloroso périplo por que passa ao tentar convencer o machista e misógino sistema judicial de sua condição de vítima de estupro. A autora, com bastante acerto, gerando imediata comunicabilidade, atribui à sua protagonista a função de narradora de sua própria história, além de servir de instrumento para dar vida àqueles que a rodeiam. Sua formação em Direito confere imensa precisão técnica à narrativa, chamando-nos também a atenção quanto às suas riqueza e credibilidade dramatúrgicas, sem espaços não preenchidos, oferecendo-nos uma obra exponencialmente valorosa em suas mensagens e denúncias. Yara de Novaes, com quem Débora mantém uma parceria artística de 20 anos consumada no Grupo 3 de Teatro, entrega-nos uma produção pulsante, corajosa, desafiadora para a sua atriz, em nenhum momento estática, revelando uma total e irrestrita conformidade com a linguagem poderosa do texto que lhe coube, fazendo com que os espectadores se deixem conduzir pela irrefreável escalada de tensão que acomete Tessa em sua inglória peleja individual. Extraindo o melhor de sua artista, aproveitando todas as viabilidades do perímetro cênico, recursos do cenário e projeções, Yara realiza um trabalho impactante sob todos os aspectos, cumprindo honrosamente a sua missão.

    Débora Falabella nos entrega uma atuação tão tocante e comovente que merece um lugar de destaque na galeria daquelas que se tornaram históricas no teatro nacional

    Débora Falabella, uma das grandes atrizes de sua geração, como Tessa Ensler, estarrece a todos com uma atuação que se notabiliza pela visceralidade, entrega e verdade emocionais e entendimento absoluto das razões e motivações de uma personagem tão rica, profunda e complexa. Débora transita com admiráveis firmeza, equilíbrio e força pelas veredas apresentadas por essa mulher possuidora de muitas camadas em sua personalidade, que vão da ironia e sarcasmo ao mais legítimo desespero, frustração e vulnerabilidade. Como se não fosse o suficiente, a atriz mineira nos surpreende com uma invejável expressividade corporal (ótima preparação a cargo de Renan Ferreira) no decorrer de suas cenas. Uma atuação tão tocante e comovente que merece um lugar de destaque na galeria daquelas que se tornaram históricas no teatro nacional. André Cortez, responsável pelo cenário, privilegiou a objetividade e a praticidade, ao dispor sobre o palco cadeiras estofadas em amarelo, algumas sobrepostas em uma mesa, tendo ao fundo um largo e alto painel com textura de madeira, a fim de nos reportar ao ambiente de um tribunal (são assaz eficientes as projeções feitas sobre esse mesmo painel). A luz elegante, com spots laterais, sombras realçadas, momentos para o azul e o vermelho e um plano aberto suave é mérito de Wagner Antônio. A instigante trilha sonora de Morris, baseada na multiplicidade de sons de sintetizadores (bateria, teclados), pontua com coerência o desenho narrativo, com aberturas para canções contemporâneas (a versão de “Girl On Fire”, de Alicia Keys, feita por TUM, Luísa Matsushita & Chuck Hipolitho, é fantástica). Os figurinos são assinados pelo prestigiado Fábio Namatame, que cria com fidelidade as vestimentas do universo jurídico, contribuindo com bom gosto com peças de alfaiataria, como blazers e calças bem cortados. “Prima Facie” é inegavelmente um dos mais relevantes espetáculos montados nos últimos anos. Seu caráter denunciativo, potencial reflexivo e esclarecedor, lucidez e atualidade colaboram em definitivo para essa conclusão. À primeira vista, não se tem uma única dúvida razoável quanto a isso.

  • “Guida Vianna e Silvia Buarque, em uma sensível e afinada sintonia como mãe e filha, ‘rompem a parede de gelo’ ao levar aos palcos uma das mais complexas e tocantes relações humanas.”

    maio 27th, 2024
    Silvia Buarque e Guida Vianna são as estrelas da peça escrita por Daniela Pereira de Carvalho
    /Foto: Nil Caniné

    A dramaturga Daniela Pereira de Carvalho construiu um engenhoso arco narrativo no qual três gerações de mãe e filha e seus respectivos conflitos são apresentadas

    Relações entre mães e filhas, levando-se em consideração o grau de complexidade que as define, sempre foram retratadas ficcional ou factualmente em peças teatrais, filmes e livros. Esses relacionamentos movidos pelas mais diversas emoções e intensidades, em que podem ser encontrados lado a lado o mais infinito amor e a mais implacável das intolerâncias, geram de modo invariável o interesse e a curiosidade do indivíduo. Sendo este um tema inesgotável a ser explorado, marcado pela sua universalidade e atemporalidade, qualquer obra artística que se proponha a abordá-lo sob um novo olhar é bem-vinda. Sendo assim, a dramaturga Daniela Pereira de Carvalho mergulhou com destemor e profundidade no texto do espetáculo “A Menina Escorrendo dos Olhos da Mãe”, que de imediato nos seduz pelo seu bonito e sugestivo título. Daniela, com notável habilidade, construiu um engenhoso arco narrativo no qual três gerações de mãe e filha com seus respectivos conflitos nos são apresentadas, começando com Elisa (Guida Vianna), 70 anos, que reencontra a sua filha Antônia, 50 anos, trinta anos depois, em uma viagem a Mumbai, na Índia, em um quarto de hotel. A longa separação foi motivada pela não aceitação da mãe quanto à homossexualidade de sua filha. A autora se embrenhou neste universo particular de duas mulheres, inundado de mágoas, ressentimentos e culpas, para colocar sobre a mesa uma pauta que aflige severamente a sociedade, a homofobia. Passados 20 anos, agora é a vez de Antônia (Guida Vianna) acertar as contas com a filha Helena (Silvia Buarque), entregue para a adoção ao nascer. O delicado e nervoso reencontro, que ocorre no restaurante de Helena, é cercado de sentimentos similares ao primeiro, ao qual se somam a vergonha da mãe e a impassibilidade da filha. A despeito da aridez dessas reuniões, nas quais em determinados momentos as atrizes protagonizam solilóquios, a dramaturga não dispensa a possibilidade de redenção e afeto mútuo, imprimindo à montagem importantes aspectos humanos.

    “A Menina Escorrendo dos Olhos da Mãe” chega às plateias de muitas maneiras

    Leonardo Netto, a quem coube a bem-sucedida direção, privilegiou nitidamente as atuações de suas intérpretes, visto que seus diferentes papéis possuem uma vasta paleta de elementos comportamentais/emocionais. Desta forma, o texto em si passa a ser também, palavra a palavra, bastante estimado. O diretor, tendo em mãos duas atrizes com valiosa experiência, vale-se disso para desenhar com distinta variação as linhas de marcação do espaço teatral, preenchendo-o harmoniosamente com uma dinâmica compassada. O encenador realiza ainda com sucesso a transição temporal dramatúrgica, que se dá naturalmente, sem grandes rupturas. Guida Vianna, uma atriz com imensa personalidade e irrefutável carisma, laça os olhares do público com sua pujança interpretativa nata. Tanto como Elisa quanto como Antônia, Guida nos oferece um rico compilado de emoções, sabendo alterná-las com sabedoria e tempo cênico exatos. Silvia Buarque, artista conhecedora dos palcos dotada de nuances e sutilezas em suas expressões dramáticas, acompanha lindamente a sua colega de cena nessa fascinante jornada de mães e filhas que atravessa décadas. Silvia encara com altivez os desafios impostos pelas suas duas personagens com caracteres opostos, Antônia e Helena, alcançando honrosamente seus objetivos. Uma talentosa dupla em sensível e afinada sintonia. O cenário de Ronald Teixeira é deslumbrante, com vultoso impacto visual. Ronald espalhou por toda a ribalta folhas secas, suspendeu em posições variadas mais de uma dezena de janelas com formatos desiguais, vazadas e ornadas com ramalhetes, distribuiu algumas cadeiras e uma mesa bistrô sobre o tablado e colocou ao fundo um belo painel espelhado que distorce as imagens. Os figurinos, com destaque para a transparência preta, o brocado e o dourado, além de casuais casaco e vestido, também levam a sua assinatura. Paulo Cesar Medeiros contribui com uma luz elegante, representada por plano geral/aberto em tons amarelados que assumem distintas gradações, spots laterais, focos com blecaute e o uso de filtros vermelho e azul. A sempre competente Marcia Rubin, com a sua direção de movimento, auxilia as atrizes a comporem com maior veracidade os seus papéis. A trilha sonora de Leonardo Netto, servida com ritmos e sons ditados por teclados e sopro, atende eficientemente às demandas da obra. “A Menina Escorrendo dos Olhos da Mãe” é um espetáculo que chega às plateias de muitas maneiras, seja pela presença cativante de suas atrizes, seja pelos assuntos seríssimos levantados, seja pelo fato de que todos nós conhecemos alguma boa história entre mãe e filha. Principalmente se essa filha “escorre dos seus olhos”.

  • “Os sinos dobram enquanto Analu Prestes, Mario Borges e Stela Freitas arrebatam o público em ‘As Crianças’.”

    maio 14th, 2024
    Stela Freitas, Mario Borges e Analu Prestes são físicos nucleares que se confrontam de diversas formas ao debaterem temas universais e em especial os relacionados a um desastre ambiental causado por um acidente nuclear/Foto: Renato Mangolin

    Torna-se impossível não se impressionar com o texto da dramaturga inglesa Lucy Kirkwood

    A peça “As Crianças” (“The Children”) estreou em 2019, ano em que ocorreu a tragédia de Brumadinho, em Minas Gerais. A peça hoje, em 2024, ano em que ocorrem as devastadoras enchentes no Rio Grande do Sul, continua em cartaz. Ou seja, o espetáculo escrito pela dramaturga inglesa Lucy Kirkwood em 2016, traduzido magistralmente por Diego Teza, indicado a 25 prêmios, sendo vencedor em 9 deles, continua, infelizmente, atual, já que um de seus temas são as consequências ambientais e sociais causadas por um acidente nuclear. A jovem autora Lucy, com notável conhecimento da alma humana e do quanto ela pode ser transformada ao longo da sua existência seja por meio das relações interpessoais ou devido a um trauma de grandes proporções não só para a natureza mas para os indivíduos, possui pleno domínio das palavras e de como construir de modo elaborado um jogo cênico/dramatúrgico de tal forma envolvente que se torna impossível não se impressionar com o seu texto.

    Um casal de físicos nucleares e uma velha amiga de profissão se reencontram quase 40 anos depois e iniciam entre si uma série de diálogos e enfrentamentos nos quais são levantados os mais diversos assuntos, como envelhecimento, traição e ética

    Sua história retrata um casal de físicos nucleares, Dayse e Robin, interpretados respectivamente por Analu Prestes e Mario Borges, habitantes de um lugar afastado e bucólico, vítimas de uma rotina acachapante e de perturbadores fantasmas da usina nuclear objeto de um vazamento assolador localizada não muito distante da região onde vivem, ao ponto de verem o pôr do sol sobre a própria. Esta convivência modorrenta do casal é inesperadamente interrompida com a chegada quase 40 anos depois de uma velha amiga de profissão, Rose, Stela Freitas. Com a formação deste triunvirato, deparamo-nos com um ambiente em que se percebem acidez e ironia nos diálogos e enfrentamentos, no qual são levantados os mais diversos assuntos que os afetam de maneira individual ou não, como envelhecimento (e a busca para retardá-lo) e a maneira como lidamos com o nosso corpo, traição, inveja, desejo na maturidade, o modo como encaramos as doenças, libertação feminina, escassez de recursos naturais e a ética ou falta dela em cada um de nós. Com este rico material, a escritora consegue nos presentear com um arcabouço narrativo poderoso com mensagens que ao final podem ser encaradas como redentoras e esperançosas. Vale destacar ainda que o texto traduzido por Diego tem a peculiaridade, sendo quebrada a quarta parede, de serem ditas em certos momentos as suas rubricas, tão importantes para o entendimento daquele, por alguns de seus personagens.

    Rodrigo Portella, tendo um elenco de altíssima qualidade, deixa a sua marca em um dos melhores espetáculos encenados nos últimos anos

    Rodrigo Portella, um dos diretores mais prestigiados de sua geração, vencedor dos prêmios Cesgranrio, Botequim Cultural e APTR por esta montagem, que também foi laureada com o Cesgranrio e o Botequim Cultural de “Melhor Espetáculo”, é conhecido pelos estudiosos da área e pela classe artística pela sua defesa tenaz da simplicidade teatral, e é com esta mesma simplicidade, porém preciosíssima sob diferentes óticas, que a sua marca é impressa com excelência em um dos melhores espetáculos encenados nos últimos anos. Rodrigo direciona com precisão o seu foco na composição interpretativa de seus atores, na melhor maneira de seu elenco canalizar as mais amplas e ambíguas emoções, no jeito mais eficaz do texto ganhar a embocadura perfeita dos seus artistas. Um profissional que se preocupa em valorizar a ribalta e demais acessórios cênicos com todas as infinitas possibilidades que lhe são oferecidas, reverenciando a tensão, o conflito, no entanto sem abandonar os lugares que a poesia e a graça podem e devem ocupar. O trio de atores escalado para dar vida aos personagens de Lucy Kirkwood, Analu Prestes, Mario Borges e Stela Freitas, todos com reconhecida experiência e talento, é de altíssima qualidade, sendo, sem quaisquer dúvidas, absolutamente responsáveis pelo nível de sucesso alcançado pela peça em todas as suas temporadas. Analu Prestes (Prêmios Shell, Cesgranrio, Botequim Cultural e APTR de Melhor Atriz) nos transmite com espantosa densidade a ambivalência, a amargura e a inconstância de Dayse, além de toda uma sucessão de camadas afetivas que a definem. Mario Borges, como Robin, vale-se com sabedoria de seus recursos interpretativos para criar um tipo que transita pelo caráter bonachão e espirituoso, mas que, dependendo da ocasião, descamba para uma irascibilidade. E Stela Freitas acerta magnificamente ao apostar na impassibilidade, no pragmatismo e no ar “blasé” de sua física nuclear. O cenário do próprio diretor Rodrigo Portella e de Julia Deccache atende ao princípio da simplicidade defendido pelo primeiro, priorizando tão somente elementos vitais para o desenvolvimento da trama, o que de forma alguma lhe tira o charme e o interesse, representados por uma mesa retangular de madeira e suas respectivas cadeiras, além de acessórios lúdicos, como um cavalinho de balanço. Paulo Cesar Medeiros se encarrega de embelezar o espetáculo através de sua luz, caracterizada em grande parte por uma iluminação aberta/geral, próxima ao amarelado, que sofre, dependendo da situação, oscilações de matiz. Paulo se esmera ainda em introduzir deslumbrantes focos, feixes vindos do fundo do palco e spots laterais que exploram belamente o azul e o verde. Os figurinos são criações de Rita Murtinho, que os reportou a um universo distópico, observado nos tons sombrios de cinza/chumbo, acrescidos pelo verde e ocre, em vestimentas que apresentam remendos e costuras. A proposta de Rita, que ainda optou por galochas para os atores, impacta, estando em total consonância com a dramaturgia. A trilha sonora original de Marcello H. e Federico Puppi contribui sobremaneira para a ambiência crível da peça com suas inserções instrumentais calcadas principalmente nos sons graves de cordas, pontuando quadros de tensão, expectativa ou apenas transição de cenas. Marcelo Aquino, responsável pela preparação corporal dos intérpretes, cumpre sua função com vultosa eficiência, porquanto vemos a execução plena tanto postural quanto de movimentos demandada pelos seus personagens. “As Crianças” é uma peça teatral que se destaca pela sua atualidade, sua urgência e inteligência dramatúrgica. Seu forte teor denunciativo jamais passará incólume aos olhos de seus públicos. Uma obra redentora que aposta em um mundo melhor ao acreditar nas futuras gerações, mas isso não seria possível se não fossem as nossas adoráveis “crianças” Analu Prestes, Mario Borges e Stela Freitas, que “brincam” lindamente em cima de um palco.

  • “Vilma Melo, na qualidade de brilhante atriz, reverencia a ancestralidade e a importância da luta do povo preto em ‘Mãe de Santo’.”

    abril 29th, 2024
    Vilma Melo, indicada a relevantes prêmios como “Melhor Atriz”, dá voz a diferentes mulheres negras e suas vivências no monólogo cujo argumento é da filósofa, escritora e professora Helena Theodoro/Foto: Guga Melgar

    Idealizado pela atriz Vilma Melo e o produtor cultural Bruno Mariozz, o monólogo “Mãe de Santo”, com argumento de Helena Theodoro e dramaturgia de Renata Mizrahi, parte da premissa, dentre outras, do quanto são vilipendiadas e ofendidas as mulheres pretas brasileiras

    No último dia 23 de abril o presidente de Portugal Marcelo Rebelo de Sousa disse em pronunciamento que “seu país teve responsabilidade sobre crimes na era colonial, como tráfico de pessoas da África, …” e “que o Estado português deveria reparar danos causados nesse período.”. De fato, as consequências desastrosas para a população negra brasileira são sentidas até os dias de hoje, vistas rotineiramente na exclusão e desigualdade sociais, no preconceito e discriminação raciais, independente das classes ocupadas, e nos crimes de racismo e injúria racial praticados e noticiados com frequência nos meios de comunicação, demandando reparações obrigatórias que revertam ao máximo todo o estrago feito contra um povo e sua cultura. No entanto, em um país em que as mulheres são relegadas a um patamar inferior, pode-se imaginar o quanto, em grau mais elevado, as de pele preta são vilipendiadas e ofendidas com constância. Partindo-se dessa premissa, a atriz Vilma Melo e o produtor cultural Bruno Mariozz idealizaram o projeto de realização do espetáculo “Mãe de Santo”, que contou com o valioso argumento da filósofa, escritora e professora Helena Theodoro, que serviu para que a autora teatral Renata Mizrahi, valendo-se de seus textos e relatos, compusesse com riqueza a dramaturgia que nos é apresentada e que integra a trilogia “Matriarcas”, formada ainda por “Mãe Baiana” e “Mãe Preta”.

    A rica dramaturgia de Renata Mizrahi leva ao público registros reais de discriminação, preconceito e racismo, seja contra uma influencer famosa, uma empregada doméstica ou as próprias Helena Theodoro e Vilma Melo

    Renata, com a adoção de recursos narrativos eficientes, utilizou-se da figura central de uma palestrante, Vilma Melo, que no decorrer de suas falas pertinentes às condições em que mulheres pretas são vítimas de comportamentos alheios discriminatórios em virtude do fato de que são simplesmente mulheres pretas fosse o ponto de partida para que houvesse o compartilhamento de histórias assemelhadas que certificassem a prática racista e sexista predominante em nosso país. Casos que jamais podem cair na banalização e desdém são divididos com a plateia pela protagonista, que se desdobra com seu retumbante talento na representação desses personagens reais, baseados em experiências inclusive da filósofa Helena Theodoro e da própria Vilma, como a revista de “praxe” na bagagem em um aeroporto, o pedido de documentos a uma famosa influencer e blogueira viajando na primeira classe do avião, uma estudante acusada por uma instituição de ensino e punida por isto ao ser a única “culpada” em uma situação em que os seus colegas colaram de sua prova, a empregada doméstica acusada de furto exatamente no dia em que estava de folga, uma representante de religião de matriz africana que em uma viagem para um evento de repercussão internacional para o qual fora convidada se deu conta de sua invisibilidade para os demais, uma grande atriz que se indignou com uma fala equivocada de uma cena de novela e circunstâncias que envolvem algo grave e rotineiro como a intolerância religiosa, ao ponto da vítima não se calar e exclamar: – Não mexam com o meu sagrado!, uma das frases mais impactantes do espetáculo. Contrariando expectativas de que esses temas tão áridos fossem tratados somente com o peso que os mesmos carregam, a dramaturga fez questão de não preterir a leveza em determinados momentos no seu desenho textual, capazes até de arrancar risos (seriam eles nervosos?) dos espectadores. Há que se falar que a dramaturgia abordou, respeitando-se toda a dor existente, um dos acontecimentos mais traumáticos da vida da autora do argumento, a perda precoce de seu filho levado pelas ondas do mar.

    Vilma Melo, grande atriz, é dotada dos mais variados predicados que lhe permitem dar vida com leveza ou graça ou com o mais contundente dos dramas às diversas personagens que interpreta

    Luiz Antonio Pilar, o diretor da montagem, em absoluta conexão com Renata e Vilma, coloca no palco uma bela e poética encenação, sem que todas as sérias denúncias deixem de ocupar o seu lugar de destaque. Ciente das potencialidades artísticas de sua intérprete, Luiz as explora com equilíbrio e sabedoria, acertando, com sua apurada visão, ao inserir nos pontos adequados, os cantos deslumbrantemente entoados por ela. Outro aspecto a ser mencionado é a bem-sucedida e assaz elegante interação entre a atriz e a audiência com perguntas que nos levam à reflexão. Quanto a Vilma Melo, a partir de sua entrada em cena, já formamos a convicção de que estamos diante de uma grande atriz, dotada dos mais variados predicados que lhe permitem dar vida seja com graça e leveza ou com o mais contundente dos dramas às diversas personagens que perpassam o arco narrativo e suas respectivas vivências. A atriz carioca, primeira atriz negra a ganhar o prêmio Shell em 2017, e indicada por este trabalho ao mesmo prêmio Shell em 2023 e ao APTR em 2022, possui a inteligência cênica exigida para enfrentar tamanho desafio e o faz garbosamente, valendo-se da sutileza de seu olhar para nos transmitir algo importante ou de sua potente e bem articulada voz, usada de forma encantadora nas canções emocionantes que interpreta. A trilha sonora original de Wladimir Pinheiro ocupa uma função precípua na peça, conferindo-lhe, tendo por base essencialmente acordes que derivam do som dos atabaques que se somam aos de cordas, um resultado bastante expressivo e de notável beleza, marcando com êxito as cenas e suas transições. O cenário e o figurino foram criações de Clívia Cohen, que soube imprimir ao primeiro uma linda simplicidade coberta de simbolismos, observada nas dezenas de turbantes em preto e branco presos a fios espalhados por toda a ribalta, acompanhados por cadeira, tamborete e bacia de madeira azuis e cercados de bambu, também foi bastante feliz no figurino de Vilma Melo, trajada com um vestido meio ombro azul com estampas de círculos coloridos e acessórios imponentes (há ainda peças que lhe servem posteriormente de Pano da Costa, uma espécie de vestido, e um Ojá, turbante). A iluminação de Anderson Ratto é um indiscutível fator de embelezamento da produção, com o sábio uso dos turbantes que servem como pontos de incidência de sua luz, que passeia por cores como o rosa e o vermelho, além da prevalência do azul em certas ocasiões, focos muito bem calculados e alguns efeitos deslumbrantes, como os spots colocados atrás das cercas de bambu e a luz sobre a bacia d’água. “Mãe de Santo”, que já foi apresentada em festivais internacionais em Cabo Verde e Moçambique, além de Portugal, é uma peça teatral de caráter urgente e necessário, que é para ser vista e revista, pensada, avaliada, visto que assuntos que nos são muito valiosos, como ancestralidade, formação do nosso povo brasileiro, com sua maioria de pessoas pretas, racismo e invisibilidade da mulher negra são tratados com legitimidade e seriedade. “Mãe de Santo” é um grito de “Basta!” em cima de um palco. É um grito de “Não mexam com o meu sagrado!” em cima do mesmo palco.

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