Foto: Divulgação do espetáculo
Pare para pensar. Dez anos se passaram. Não são dez dias, semanas ou meses. São dez anos. Ou seja, muita coisa pode acontecer. E aconteceu para Daniel (Edwin Luisi), que num certo momento, sem mais nem por quê, decidiu abandonar a família, a esposa Clarice (Alice Borges), e o filho pequeno Dênis (Johnny Massaro). Clarice nunca se conformou com esta situação, tampouco Dênis, que conforme fora crescendo, começou a sentir a ausência da figura paterna, e ao se dar conta de que a mesma era permanente, ao ouvir a simples menção do nome do pai, era tomado por arroubos coléricos. A história se inicia com a mulher abandonada lendo uma carta do marido que a deixou, e que agora mora em Paris. Na missiva, Daniel não se mostra claro quanto às razões que o levaram a abrir mão do lar. E afirma que voltará ao Brasil para revê-la, e Dênis, já rapaz, também. A ansiedade domina Clarice, e a indignação, o filho. Toda esta contingência sofre as intervenções da “espaçosa” empregada doméstica Genevra (Carolina Loback). O que ocorrera com Daniel, afinal? O até então pai de família descobriu o seu “eu verdadeiro”. Para ele, pensava que era quem de fato não era. Complexo? Não, nem um pouco. Daniel resolveu tornar-se mulher, e para isso não poupou esforços. Transformou-se numa famosa e bem-relacionada artista transexual que se apresenta em casas de shows parisienses: Lana Lee. Com a chegada dela onde morava, a essência de “Tango, Bolero e Cha Cha Cha” se configura. Suspense em torno da revelação da identidade de Daniel à ex-esposa, e junto a isto série de confusões de incomunicabilidade entre eles. Tudo se torna mais complicado, e contribuindo para a gigantesca turbulência formada, com o aparecimento do jovem Peter (Pedro Bonisch), um ilusionista com sotaque italiano que Lana conheceu em Paris, deflagrando paixão mútua. O espetáculo é comédia pura, rasgada, divertidíssima, com ares contemporâneos de “vaudeville”. O dramaturgo Eloy Araújo alinhavou seu hilário texto com bastante diálogos espirituosos, por vezes com duplo sentido (porém, sempre com a cautela que só os tarimbados o sabem fazer), e o resultado é bem-sucedido naquilo a que se propôs. O elenco está afinado. Edwin Luisi desafiou a si mesmo. A composição como Lana Lee é irretocável. O ator preocupou-se com todos os detalhes para fazê-la engraçada e carismática. Há que se merecer destaque o tom de voz empregado e a excelente expressão corporal. Pedro Bonisch é uma grata e bem-vinda surpresa. Pedro dá ao personagem Peter postura bem-humorada, leveza, e cinismo em dose exata, constituindo par cômico com Edwin. Há passagem solo do intérprete na qual o mesmo prova talento para lidar com o público, havendo ainda lírico instante. Alice Borges, reconhecida atriz habituada ao humor, está ótima como a mulher que se estupefaz com as surpresas da trama. O Dênis de Johnny Massaro é representado com dinamismo, agilidade e histrionismo adequados. E Carolina Loback constrói a empregada Genevra de modo espontâneo, com sobeja graça, buscando, e conseguindo a cumplicidade dos espectadores. A direção da mestra Bibi Ferreira, é claro, só colabora para a formatação de um conjunto redondo, um todo cênico que faz jus à comédia de qualidade, usufruindo do potencial artístico do elenco, e do palco de que dispôs. A iluminação de Paulo César Medeiros é eficiente na tarefa de pontuar a peça com as tonalidades de luz corretas. O cenário de José Dias é funcional e ostentoso, primeiro no que diz respeito à sala em que se passa a ação, e segundo no “grand finale”. Os figurinos são alegres, jocosos e exuberantes. A trilha sonora de Andrea Zeni contenta-nos com os ritmos do título da encenação. Enfim se lhes der vontade de ouvir um tango, um bolero ou cha cha cha, e rir, mas rir muito, já sabem exatamente o que fazer.