Foto: Julio Andrade
Um ato de coragem. Assim podemos definir primeiramente a iniciativa do ator, dramaturgo e diretor Álamo Facó de levar aos palcos, tornando público, um drama pessoal extremamente íntimo, que envolveu a sua mãe, a arquiteta Marpe Facó, diagnosticada com um tumor cerebral em 2010, fato que levou o intérprete a acompanhá-la por 100 contínuos dias em um quarto de hospital até o seu falecimento, numa jornada dolorosa, traumática e emotiva. De acordo com o próprio Álamo, o espetáculo escrito por ele e dirigido em parceria com Cesar Augusto foi baseado num processo chamado “síntese do relevante”, e não se busca com a encenação uma “realidade documental”. Apresentado à princípio em dois festivais no formato de performance no ano passado, “Mamãe” se utiliza de nomes ficcionais para narrar esta história catártica, transcendental e pungente, que ultrapassa os limites do palco de um teatro, atingindo em cheio, sem piedade, nossas emoções guardadas, e as despertando para um nível máximo de expressão. Uma obra que não se resume ao entendimento vezeiro, e que nos transporta para uma reflexão individual, profunda, difícil e complexa acerca de nossa finitude material. No estonteante e hipnótico cenário de Bia Junqueira, com seus néons coloridos estrategicamente posicionados, ao som perturbador de uma respiração agoniada, Álamo Facó irrompe em cena com torso nu, pés descalços, e cabelos longos e soltos, verbalizando incontidamente os desejos momentâneos de Marta (na verdade, sua mãe Marpe). Ela, já incapacitada, presa a uma maca fria de um quarto de hospital asséptico, liberta-se ao exprimir as suas vontades urgentes, como assistir à peça teatral de seu filho Lázaro (que representa Álamo Facó; o artista estava em cartaz à época com “Pterodáctilos”). O ator em seguida se joga ao chão, retorce-se, contorce-se, vira-se, debruça-se num jogo alucinante de expressividade corporal. Na montagem, vemos a luta infatigável e brava de Lázaro para “ressuscitar” sua mãe (o nome Lázaro não foi escolhido por acaso, ao que parece; de acordo com o Evangelho segundo João, foi o amigo ressuscitado por Jesus). Assim que Marta recebeu o aterrador diagnóstico, o seu médico, Dr. Ladeira, como muitos de seus colegas de ofício que juraram salvar vidas, atendendo ao que Hipócrates recomendou, apresentou soluções procedimentais: “Corta, serra, abre, chega às meninges”. O mesmo Dr. Ladeira usou a chave de seu carro para testar a sensibilidade do corpo da paciente. Mesmo em coma, a consciência de Marta se expande, avançando e derrubando fronteiras até então inexpugnáveis. Suas lembranças estão mais vivas do que nunca. Recorda-se da adolescência rebelde e transgressora de seu filho, com orgias, abortos, drogas e arte. O filho que um dia já foi Frida Kahlo na ribalta, e que se machucou num cacto. Lembra-se de seu marido Mauro, do casamento morno, no qual havia deliberadas traições de ambas as partes, sem que nunca houvesse acabado a imensa parceria e companheirismo do casal. Mauro, ao saber do estado de sua ex-mulher, disse-lhe: “Um raio não cai duas vezes no mesmo lugar”. Sem pudores, a mãe se permite a falar palavrões. Estes são libertadores. Lázaro persiste em sua tentativa sobre-humana de travar uma comunicação com a mãe inerte. Ela lhe dá sustos. Não se move, não abre os olhos, parece não respirar. “Mãe, mãe, mãe, mãe, mãe…”, chama o filho. Ele canta as músicas de que ela tanto gosta. Brinca com sua aparência. Tira foto. Marta parece Sid Vicious ou uma personagem de um filme de Meryl Streep, segundo ele, ou Susan Sarandon, ou pode ter saído de “Taxi Driver”, com seu cabelo de moicano de esparadrapos. O rapaz enfeita o seu quarto já “enfeitado” com aquelas máquinas “mortíferas”. Decora-o com pinturas abstratas e modernas, quadros com fotos (uma “visita” de Bob Marley, Mick Jagger e Peter Tosh, uma referência a Louise Bourgeois, o protesto do homem chinês solitário na Praça da Paz Celestial com seus tanques…). Há cores onde não havia. A cor da vida. A cor da cura. A cor que cura o coma. Há uma saída para Marta. Um remédio à base de hortelã. Não, não pode. O Estado não deixa. É proibido salvar vidas. A burocracia tem que atender às suas regras mortais. Não podem ser infringidas. Há outra esperança medicinal: o canabidiol. Imagina, como liberar um medicamento feito a partir de uma droga psicotrópica. Onde está a ética? E onde está a vida de Marta? A pergunta que se deve fazer é: – Que pessoa essa doença tem? E não: – Que doença essa pessoa tem? A mulher que deu a vida à Lázaro queria ser cremada ao som de “What a Wonderful World”, de Louis Armstrong. No local onde suas cinzas foram deixadas, surge um casulo. Um dia, dele nasce uma mariposa. Uma mariposa que voa para o céu. Voa para o céu e nunca mais é vista. Antes de sua morte, correntes de pessoas, familiares e amigos do ator se formam, rogando pela sua recuperação. O filho amado batuca numa espécie de atabaque (um tamborete de acrílico) em frente à cama de sua progenitora como se estivesse num ritual religioso, como se a reverenciasse e a adorasse como uma divindade, e pedisse aos céus que lhe desse de volta a vida, a sua Marta de antes. Já no fim próximo da existência de sua mãe, Álamo, agora, tentou, com os seus familiares, levá-la para ver o seu espetáculo. Seu corpo estava “despetalado”. Como isso seria impossível, que ao menos Marpe Facó fosse para fora do hospital pela última vez para pegar um pouco de sol. Não pegou. Enfermeiros de prontidão, no lobby, não deixaram que o sol batesse em seu rosto. Os eficientes enfermeiros cumpriram ordens do eficiente hospital. O hospital que nega o último sol para os seus pacientes. Em muitos momentos, Álamo Facó exercita algo semelhante às reverências típicas das religiões afro-brasileiras. Com esta dramaturgia cortante e poética, com períodos em que se dá vez ao leve humor, Álamo Facó logrou o que desejava com excelência. Dividir com o outro, com os espectadores que seguem a sua arte a sua experiência pessoal. Álamo, tanto como autor, quanto como diretor e ator, expurga todos os fantasmas que de forma ou outra o angustiavam. Exibi-los em um palco, com o seu texto sólido, sensível, emocionado, confessional e implacável foi uma maneira ideal para a regeneração de seus sentimentos outrora tão machucados. O compartilhamento da dor a atenua. E o compartilhamento do amor o recrudesce. A direção de Álamo Facó e Cesar Augusto é vitoriosa, pois atinge o que mais se pretende com a atividade cênica: a emoção da plateia. Cada indivíduo sentado no teatro possui o seu silêncio, contém a sua lágrima, lembra-se de algo similar com um amigo, segura o nó na garganta, sorri nervosamente ou da graça mesmo. Percebe-se um acontecimento empático. Todos nós sentimos um pouco ou muito a dor de Lázaro. Todos nós, de algum jeito, queríamos ajudar aquele filho em sua guerra pessoal. Os diretores não quiseram fazer algo integralmente pesado, sombrio, e para isso usaram elementos como a coloquialidade de algumas passagens e a comunicação do protagonista em uma conversa bastante franca com a sua plateia. A leveza também está nas frases divertidas do rapaz, nos instantes em que dança, e nos momentos em que Álamo fala como Álamo. A atuação de Álamo Facó, seja como Lázaro seja como Marta, arrebata-nos por sua intensidade emotiva, por sua verdade desconcertante, pelas tintas fortes conferidas tanto à dor quanto ao amor emanados de seus personagens. Álamo, como Marta, compõe com majestosa delicadeza a mulher fragilizada, com voz quase murmurante e embargada, refém de seus gestos curtos e palavras quebradas, e de sua postura vulnerável. Suas mãos são eloquentes, dizendo-nos o bastante sobre o seu padecimento. Entretanto, em suas viagens além da consciência, mostra-se alegre, efusiva e empolgada. Já como Lázaro, o intérprete transita com brilho nas diversas vias emocionais que a personalidade do filho lhe impõe. Com sua inquestionável sensibilidade, vivência de palco e talento, Álamo Facó é forte, intenso, frágil, confiante, otimista, crítico, corajoso e doce. A direção de movimento/co-direção de Luciana Brites é fenomenal. Ela consegue explorar uma infinidade de possibilidades corporais do ator. O corpo de Álamo reflete uma plasticidade bela. O seu corpo esbelto é um instrumento de exteriorização dramática que funciona como feliz complementação da composição do ator de ambos os papéis que defende. A direção musical de Rodrigo Marçal nos ambienta com habilidade notável com o universo retratado. Os ruídos incômodos de uma respiração, o poder dos trovões, a personalidade de uma chuva vigorosa que nos atemoriza e nos assusta, além de uma sonoridade não identificável que vem e se afasta inesperadamente. Ao lado de Rodrigo, Álamo contribuiu com acerto e propriedade para que a trilha sonora fosse diversificada e familiar, açambarcando gêneros distintos, ouvindo-se desde um rock clássico como “Summertime”, quanto um standard, como “I’ve Got You Under My Skin”. O cenário de Bia Junqueira, como asseverei logo no começo deste texto, hipnotiza-nos com sua estética estonteante. Bia logrou aquilo que nos pareceria inviável. Transformar em beleza rara o que nos é triste e desolador: um quarto de hospital. O que vemos são 14 luzes fluorescentes logisticamente distribuídas: três superiores frontais, três inferiores frontais, duas centrais no alto, quatro laterais posteriores em par, e duas frontais nas laterais. Somando-se a elas, quatro cadeiras vermelhas de acrílico (três delas juntas formam a maca/cama), um tamborete transparente do mesmo material, cinco persianas de tom claro, abertas e semiabertas num fundo negro, quadros, fotos emolduradas, dois suportes metálicos das luzes, um cacto decorativo, dois aparelhos que soltam intermitentemente um fog (causa-nos a impressão de que seja o oxigênio de que a paciente necessita), diminutas luzes indiretas sobre o palco, dividindo o espaço com serpentinas plásticas em cujo interior há pequeninas lâmpadas (este mesmo recurso é usado embaixo da maca/cama), uma bola no chão com iluminação interna, e um piso coberto com um produto prateado refletor. A luz de Felipe Lourenço é soberba. Felipe intentou com substancial êxito dar vida à peça com luz e cor, literalmente. Há uma exuberante alternância de cores nas lâmpadas fluorescentes/néons (apagam-se e se acendem, em vermelho, azul e branco/neutro). Há um feérico uso das luzes em sua resplandecência, mas não se deixando de lado os focos e sombras, a meia-luz. Um fascinante momento ocorre quando as pequenas luzes das serpentinas alumiam, causando um efeito poético, mágico, festivo e acolhedor. As persianas também são alvo da iluminação, provocando um harmônico resultado visual. O figurino coerente e despojado de Ticiana Passos se esmera em valorizar as formas físicas do corpo do ator, trajando-o com uma calça justa preta, facilitando sobremaneira os seus largos movimentos. O personagem também usa uma jaqueta esportiva, mantendo-a aberta com o peito e o abdômen à mostra. A preparação musical de Álamo Facó ficou a cargo de Lan Lahn, que soube sabiamente extrair de sua voz uma suavidade e uma espontaneidade aprazíveis de se escutar. O intérprete possui uma voz terna e charmosa, afagando as melodias que canta. Este trabalho é complementado pela ótima colaboração da preparadora vocal Sonia Dumont, que de modo inteligente fez com que brotassem do artista as suas qualidades intrínsecas, e as utilizasse com distinção, adequação e convencimento no desenho dos perfis de Lázaro e Marta. “Mamãe”, que tem a direção de produção de Carlos Grun, é um espetáculo essencialmente libertário e honroso, que confronta o gigantismo da dor com a redenção do amor maior. Que aposta fundo na honestidade das emoções e intenções de um artista que possui a urgência de contar a sua história. Uma obra provocativa e denunciatória. Denuncia-se a frieza e a indiferença do homem com o seu semelhante. Revela o quão grande pode ser o sentimento de um filho. Prova que o laço materno é eterno. Na vida e além dela. Álamo Facó em certa passagem de sua peça, diz algo próximo: “No teatro, tudo pode”. Sendo assim, em “Mamãe”, Marpe Facó tem um outro final. Junto ao seu filho Álamo, recebe o seu último raio de sol na plácida face.