Blog do Paulo Ruch

Cinema, Moda, Teatro, TV e… algo mais.

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Foto: Divulgação/TV Globo

Não é a primeira vez que a teledramaturga Gloria Perez aborda as questões de gênero em suas novelas. Em “Explode Coração”, de 1995, na mesma Rede Globo, o personagem do ator Floriano Peixoto se chamava Sarita, era considerado um travesti, e se apresentava na noite em shows característicos. A maneira natural com que o assunto fora tratado, e a forma digna com que o papel fora defendido por Floriano não proporcionaram a rejeição do público. A figura de um travesti levando a vida como artista, não se entregando à prostituição, como a maioria faz por falta de oportunidades no mercado de trabalho e pela oposição familiar, no horário nobre de uma emissora de grande alcance no Brasil já poderia ser interpretado como um importante avanço. Mais de duas décadas se passaram, algumas coisas mudaram e outras se mantiveram. As discussões sobre as identidades de gênero entraram na pauta de relevantes debates, sendo o tema retratado em filmes, peças teatrais e produções televisivas. Podemos pegar um exemplo da época do folhetim. No longa-metragem de Stephan Elliott, “Priscilla, A Rainha do Deserto”, lançado um ano antes, o respeitado ator britânico Terence Stamp personificou um travesti que trazia consigo tanto a graça quanto a sensibilidade. Recentemente, uma das atrizes brasileiras mais belas e femininas, Carolina Ferraz, a despeito, segundo a própria, de não ter sido incentivada a fazê-lo, interpretou um travesti no filme “A Glória e a Graça”, de Flávio Ramos Tambellini. No teatro, o projeto da dramaturga Marcia Zanelatto, “Ocupação Rio Diversidade”, faz sucesso desde 2016, mantendo-se em cartaz até hoje. O ator Luis Lobianco transpôs para os palcos, com a montagem “Gisberta”, a trágica história de um transexual brasileiro que foi cruelmente assassinado em Portugal. O autor Aguinaldo Silva ofereceu ao ator Ailton Graça, acostumado a papéis viris, a chance de vivenciar com brilho o travesti Xana Summer, na novela “Império”. Gloria Perez, sempre preocupada com as questões sociais e de comportamento, abriu mais uma porta para os transgêneros ao entregar uma personagem a Thammy Miranda em seu penúltimo folhetim, “Salve Jorge”. Os dados negativos nesses 20 anos apontam que o Brasil é o país no mundo que mais mata travestis e transexuais. Criou-se o termo “transfobia”. E a legislação brasileira ainda é bastante permissiva e omissa com os crimes motivados pela homofobia em nosso território. Quando foi anunciada a próxima novela de Gloria Perez, soubemos que haveria uma personagem com dificuldades de identidade de gênero. A curiosidade sobre como este assunto, que demanda sutilezas em seu trato e amplo entendimento, seria abordado gerou expectativas. Contrariando alguns segmentos que defendiam a escalação de uma atriz trans, Gloria preferiu que fosse convidada uma intérprete cisgênero, ou seja, uma mulher que se identificasse com o seu gênero. Gloria Perez foi mais além ao ofertar o papel a uma atriz desconhecida que tinha somente experiências no teatro. Passamos a conhecer Carol Duarte, estudante da Escola de Arte Dramática (EAD) da USP (Universidade de São Paulo). Já nos primeiros capítulos de “A Força do Querer”, percebemos que a intérprete de Ivana, filha da socialite fútil e preconceituosa Joyce (Maria Fernanda Cândido) e do ponderado e generoso advogado Eugênio (Dan Stulbach) teria tudo para honrar a enorme responsabilidade que lhe fora dada pela teledramaturga e pela emissora. Carol Duarte, extremamente bem dirigida pela equipe comandada pelo diretor artístico Rogério Gomes, que conta com a direção geral de Pedro Vasconcelos, criou com impressionante grau de veracidade, legitimidade e emoção uma personagem fascinante e encantadora pela riqueza de seus múltiplos detalhes, imiscuídos na complexidade de sua personalidade. Ivana é uma moça de classe alta que se realiza jogando vôlei na praia, e seu sonho é se tornar profissional neste esporte. Tem como sua melhor amiga a prima Simone, vivida por Juliana Paiva. Além de se dar muito bem com o pai, possui uma boa relação com a governanta da casa, Zu (Cláudia Mello). Para entendermos melhor Ivana é preciso que voltemos à sua infância. Sua mãe Joyce, uma referência de beleza, resolve transformar a sua filha na “menina mais estilosa do Brasil”. Ivana, às vezes com a mesma roupa de sua mãe, estampava as capas das principais revistas de moda. Porém, a menina cresceu, e trocou as roupas femininas e fashion que lhe foram impostas pelas camisas largas de seu irmão Ruy (Fiuk). Ivana não manifesta quaisquer sinais de vaidade. Não se maquia, não solta o cabelo, não usa salto alto. Sua postura é curvada, e seu andar é desengonçado (prova do ótimo trabalho de corpo de Carol). Até a sua maneira de falar, por instantes, é um pouco masculinizada. Tudo isso vai de encontro ao que Joyce imaginou para a sua filha, o que, obviamente, gera um conflito entre ambas. Já se sentindo incompreendida pelos que a cercam, após conversas frustradas com o seu pai, com a sua prima e com a governanta, os problemas que a atormentam só se avolumam, e sua relação com a autoestima, tendo o espelho como reflexo literal disso, piora. A jogadora de vôlei conhece na praia um rapaz, colega de esporte, Cláudio (Gabriel Stauffer). Mesmo se distanciando do padrão de beleza das moças modernas da Zona Sul do Rio de Janeiro (Carol Duarte é uma mulher bonita, com um sorriso cativante e cabelos exuberantes), conquista as atenções do jovem, que é retribuído. A partir deste momento, a aproximação dos dois faz com que a “ex-menina mais estilosa do Brasil” comece a se defrontar abertamente com a sua sexualidade. Ivana possui dificuldades não só em aceitar elementos femininos em sua vida, mas também em dar e receber afetos de um homem. Ela não entende as lisonjas de cavalheiro de Cláudio, como puxar a cadeira de um restaurante, ou ajudá-la a escolher um prato. Sente atração por ele, no entanto vê impeditivos, que lhe são desconhecidos, para a concretização de seus desejos. Rejeita os toques físicos do moço. Um final de semana numa pousada em Angra acabou de vez com as esperanças de que houvesse um relacionamento mais íntimo entre o par. Dúvidas quanto à sua orientação sexual surgem com incontida força. Trava uma batalha silenciosa com o espelho. Ela se olha, e não se vê refletida. O corpo que habita não lhe é confortável. Os seus seios lhe são indesejáveis. Ela os soca. Uma faixa os oprime. A prima Simone resolve marcar uma consulta com uma psicóloga. Ivana está disposta a se ajudar, e recorre aos seus auxílios. Entretanto, acaba mais confusa. Tentando ir em busca de sua feminilidade, afasta-a ainda mais. A lingerie sensual em seu belo corpo lhe soa despropositada e esquisita. Ivana começa a entrar em um processo de depressão, como se estivesse gritando o seu último pedido de socorro. A autora Gloria Perez faz um coerente paralelo entre a situação mal resolvida de Ivana quanto à sua identidade e o comportamento de Nonato, o motorista do empresário Eurico (Humberto Martins). Nonato, interpretado pelo ator cearense Silvero Pereira (Silvero, que também é dramaturgo, destacou-se no teatro com o monólogo “BR-Trans”, que narrava histórias baseadas em fatos reais de travestis, transexuais e transformistas de diferentes estados brasileiros), apesar de ser um travesti que se apresenta em shows, em nenhuma passagem sente repulsa pelo seu corpo, muito pelo contrário, aceita-o pacificamente, querendo tão somente explorar a sua porção feminina. Algumas questões são levantadas nesta fase da novela “A Força do Querer”. Em que momento Ivana irá se dar conta de sua condição de transgênero? Qual será o ponto de partida? Será que a personagem aceitará facilmente a sua transformação? Irá até as últimas consequências para se aproximar o máximo possível do gênero masculino? Quem a apoiará? Será que haverá a redenção de sua mãe, que diz amá-la incondicionalmente? Como serão as reações de seu pai, irmão, prima, e de sua amiga, a governanta? Qual será o papel da psicóloga neste processo? Ela mudará o seu nome social? A autora promoverá um encontro entre Nonato e Ivana a fim de que o primeiro possa auxiliá-la? E o seu tio Eurico, que não esconde seu caráter preconceituoso e homofóbico? São bastantes perguntas que se fazem. Ivana será um homem, transgênero, que sente atração por outro homem. Ivana será então homossexual (homem trans gay). E Cláudio? Como o rapaz da Zona Sul carioca encarará a nova realidade de sua antiga ou presente paixão? Muitos desafios são impostos. Para a autora Gloria Perez, para a atriz Carol Duarte e para os telespectadores. Como estes reagirão, os principais “juízes” de uma novela? “A Força do Querer” é uma única e preciosa oportunidade que se tem, utilizando-se o alto poder de comunicação da televisão, inclusive o das telenovelas, de se discutir esta questão real em nossa coletividade, perante a qual são se pode vendar os olhos. Será um indiscutível progresso para a luta dos transgêneros na sociedade civil pelos seus direitos se houver uma receptividade positiva aos desdobramentos da vida da personagem Ivana. Já temos o talento e a sensibilidade de Carol Duarte. Já temos a habilidade, a percepção e a delicadeza de Gloria Perez para lidar com temas áridos. Resta-nos torcer pela tolerância do público, demonstrando que sabe conviver com a diferença. Resta-nos ter a esperança de que o telespectador respeite a força do querer de Ivana, a “ex-menina mais estilosa do Brasil”.

Categorias: TV

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