Blog do Paulo Ruch

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Foto: Mauricio Fidalgo/Gshow

Há duas produções de cunho médico/hospitalar, ambas da Rede Globo, que logo me vêm à mente ao escrever sobre o primeiro episódio da série de Jorge Furtado, responsável por sua redação final, “Sob Pressão”, que estreou na noite de anteontem na Rede Globo: “Obrigado, Doutor”, de 1981, escrita por Walther Negrão, Walter George Durst, Roberto Freire, Moacyr Scliar, Ferreira Gullar e Ivan Ângelo, protagonizada por Francisco Cuoco e Nicette Bruno (na trama, o médico Rodrigo Junqueira, Francisco Cuoco, assumia uma clínica do interior do país, sem quaisquer recursos técnicos e equipamentos, tendo que se desdobrar para que não ficassem desassistidos os moradores da pobre região); e “Mulher”, série de Álvaro Ramos, Euclydes Marinho e Doc Comparato, exibida nos anos de 1998 e 1999, em que as médicas Marta, Eva Wilma, e Cristina, Patrícia Pillar, profissionais de gerações diferentes, dentro da clínica especializada no atendimento às mulheres na qual trabalham, veem-se diante de diversos dilemas éticos e da urgência de se salvar as vidas das pacientes que chegam em suas mãos. Evidente que as circunstâncias que envolvem o sistema público, e muitas vezes particular, de saúde no Brasil, de décadas passadas para cá, mudaram substancialmente, e para pior. “Sob Pressão”, inicialmente em formato de longa-metragem (e exibido na semana passada na própria Rede Globo), foi levado às telas de cinema em novembro de 2016, sob a direção de Andrucha Waddington. O filme foi inspirado no livro de Márcio Maranhão (em depoimento a Karla Monteiro) “Sob Pressão – A Rotina de Guerra de um Médico Brasileiro”. A série atual surgiu a partir de uma ideia original da diretora Mini Kerti, que coassina a direção com o mesmo Andrucha Waddington, cuja criação ficou a cargo de Luiz Noronha, Claudio Torres e Renato Fagundes. Sendo uma coprodução da Rede Globo com a Conspiração Filmes, “Sob Pressão” terá os seus episódios engendrados (incluído o primeiro) por uma equipe constituída por Lucas Paraizo, Antonio Prata e Márcio Alemão, além de Jorge Furtado. O primeiro episódio nos apresenta o cirurgião Evandro (Julio Andrade), que está defronte ao maior desafio médico de sua vida: operar a sua mulher Madalena (Natália Lage), que acaba de sofrer um grave acidente automobilístico. Evandro, por ser seu marido, devido a razões éticas, não pode operá-la. O diretor do hospital Samuel (Stepan Nercessian) deixa isso bem claro. Não há aparelho de ultrassonografia. O clínico geral Décio (Bruno Garcia) não está presente. Evandro, contrariando todas as normas de conduta médica de um hospital, decide operá-la. Seus hercúleos esforços em salvá-la, que lhe pede desculpas, são impactantes. Suas mãos firmes, porém já exausto e nos estertores do desespero, uma sobre a outra, sobre o peito da amada, executando movimentos bruscos de ressuscitação, são em vão. A mão desfalecida de sua esposa com o anel de casamento sem brilho indica o seu fim. Um ano se passa. No meio do caos estabelecido no hospital de subúrbio, Evandro passeia pelos corredores abarrotados de enfermos e feridos jogados em seus cantos. Há todos os tipos de pacientes misturados, sem qualquer critério ou seleção de gravidade. Há o que se feriu na perna, e que, através de um suborno, sugere o atendimento prioritário (Rodrigo Ferrarini). Há a senhora, Dona Dercy, Ângela Rabello, hipocondríaca, que apenas vai ao hospital falar de suas potenciais dores. Há o que deveria estar em uma instituição psiquiátrica (Jack Berraquero). E o S. Rivaldo (Emiliano Queiroz), que mesmo tendo que caminhar, não o faz, pois poderá perder a sua maca. Evandro, que nunca consegue comer, encontra a vendedora de sanduíches em uma das alas do centro hospitalar, Dona Noêmia, Ângela Leal. Surge uma emergência. Uma grávida de sete meses atropelada. Motivo do atropelamento: atravessou a rua mexendo em seu celular, com os fones nos ouvidos. Mais uma vez, o dilema ético entra em questão. Deveria a gestante ser levada para uma maternidade, mas não há tempo nem oxigênio. Salva-se a mãe ou o filho? Evandro quer salvar os dois. Face a esta situação urgente e delicadíssima, o cirurgião apela ao consumo de opiáceos, que lhe garantirão a “segurança” e o “equilíbrio” necessários para a cirurgia. O pai da criança, Vinícius de Oliveira, seu ex-marido, desconhece a gravidez. A mãe da grávida, Dona Rita, é interpretada por Mary Sheila. Evandro se dá muito bem com a cirurgiã vascular, Dra. Carolina, vivida por Marjorie Estiano. O ateísmo do primeiro e a religiosidade da segunda são um contraponto interessante na relação dos dois, que possuem em comum tragédias pessoais. A convivência entre eles e as experiências compartilhadas possivelmente os levarão para um caso amoroso, que servirá como elemento de respiro para uma série onde a palavra-chave “tensão” norteia o conjunto de acontecimentos. A operação se inicia. Não há “ultrassom”. Não há drenos para adultos. Só infantis. Percebe-se uma animosidade entre Evandro e o seu colega, o neurocirurgião Rafael (Tatsu Carvalho), talvez por diferenças hierárquicas. Qual é a saída para o cirurgião? Um pedaço de mangueira de jardim. No meio do arriscado procedimento, uma troca de olhares inevitável entre Evandro e Carolina. Os autores da série não preteriram o humor, e isto é bem-vindo, haja vista a carga dramática intensa que o tema da série carrega. Para alguns, pode soar até “politicamente incorreto”, mas não devemos nos esquecer de que se trata de ficção, e de que nos círculos hospitalares a brincadeira entre os médicos e equipe é fato corriqueiro. Evandro novamente não consegue se alimentar. Ocorre a segunda emergência do dia. Um rapaz, Bredi Pite (Dhonata Augusto), leva o seu irmão de 7 ou 8 anos, que está engasgado com uma bala, para ser socorrido. Dra. Carolina se encarrega de seu caso. Existe entre o personagem de Julio Andrade e o de Stepan Nercessian divergências quanto à política de atendimento do hospital. Evandro é humanista, e Samuel, prático. Tanto um quanto o outro tem as suas razões. Assuntos como o valor de uma vida perante as demais são colocados em xeque no debate dos médicos. A grávida Elaine (Priscilla Patrocínio) corre risco de morte. Faltam luz, bateria no equipamento, sangue e noradrenalina. Não há incubadora, tampouco UTI neonatal. O cantor e compositor Monarco, célebre sambista, personifica o paciente Antenor do Cavaco. Em estado terminal, prefere cantar e tomar uma cachaça ao sofrimento do tratamento (o cantor, inclusive, interpreta uma de suas músicas, “Deus, Dai-me Força e Coragem”). Num papo entre o fumante Evandro e a médica que tem fé Carolina, o cético cirurgião afirma que acima de nós só há… nuvens. Na conversa, descobre-se que o menino salvo com a bala presa em sua garganta é irmão de um “vapor”, traficante de drogas. Engolira na verdade um pequeno pacote com entorpecentes. Carolina corre para socorrê-lo. Não há colonoscópio, não há transiluminação por fibra ótica. Recorre-se à lanterna do celular novo do anestesista Amir (Orã Figueiredo). O menino é salvo. Evandro é um personagem polêmico, adepto de práticas condenáveis, como dopar um paciente corruptor em nome de uma boa causa (comprar noradrenalinas), ou ser capaz de dar o último gole de cachaça para S. Antenor, sabendo que isso anteciparia a sua morte. Quem vai saber? A grávida Elaine é operada. A incubadora de seu bebê Evandro (em homenagem ao cirurgião; Evandro quer dizer “homem bom”) é uma caixa de papelão. S. Antenor morre. Sem o gole de cachaça que o faria feliz. Evandro, há quatorze anos no hospital, marca com um canivete em um portal de madeira do vestiário quantas pessoas já morreram. Nunca parou para contar. Depois de tanta adrenalina, o casal Evandro e Carolina se beija, mas ele é fiel à sua esposa morta. Evandro e Carolina vão para as suas casas. Carolina ao se despir, deixa à mostra cicatrizes na região de sua cintura, revelando algo obscuro em seu passado.  Evandro vasculha o armário de sua mulher, retira um de seus vestidos, e o coloca na cama, deitando-se ao seu lado. Os fantasmas do passado separam Evandro e Carolina. O elenco fixo da série é excelente, contando ainda com Pablo Sanábio, como o residente Charles, Heloisa Jorge, como a enfermeira Jaqueline, e Talita Castro como a técnica de enfermagem Kelly. Os atores do primeiro episódio, em participações mais do que especiais, também mostraram o seu reconhecido valor. Julio Andrade nos passa toda a angústia e ansiedade de um médico determinado a salvar vidas, custe o que custar. Marjorie Estiano construiu uma profissional com a mesma determinação, porém com uma dose maior de equilíbrio e bom humor. Bruno Garcia, Orã Figueiredo e Tatsu Carvalho conferem aos seus personagens um tom de sobriedade bastante convincente com a proposta de seus perfis. Orã nos oferece em alguns momentos sua já conhecida verve cômica. Stepan Nercessian, com grande mérito, dosa o seu diretor com a severidade que o cargo impõe, além de uma certa leveza involuntariamente irônica, própria do ator. A direção de Andrucha Waddington e Mini Kerti é claramente influenciada por uma linguagem cinematográfica, pois ambos, como sabem, iniciaram suas bem-sucedidas carreiras no cinema. Muitos ângulos, tomadas e posicionamentos de câmera são experimentados. A condução das cenas segue um ritmo avassaladoramente frenético e emocionante. As cenas de cirurgia, que necessitaram de orientações profissionais, como a de Márcio Maranhão, o autor do livro, são de um realismo inacreditável. Estes takes são bastante fortes, não são para qualquer telespectador, mas foram realizados com visíveis cuidado e apuro. Os diretores de fotografia Fernando Young e Luca Cerri lograram traduzir com fidelidade máxima a luz ambiente fria hospitalar, utilizando-se outrossim com propriedade da luz natural nas locações externas. A direção de arte de Rafael Targat e os figurinos de Marcelo Pies são extremamente realistas e coerentes. A montagem alucinada e inteligente, com notória qualidade de execução, creditada a Sergio Mekler, é digna de fartos elogios. E a instigante, meticulosa e calculada trilha sonora de Antônio Pinto demarca com emoção e precisão cada cena na qual se exige a sua presença. Num país como o Brasil, em que a Saúde sempre fora colocada em um degrau inferior na escala das prerrogativas governamentais, seja nas esferas federal, estadual ou municipal. Numa nação onde se adulteram remédios para doenças graves em esquemas criminosos. Num país em que recursos da pasta da Saúde são desviados para fins espúrios. Num país no qual as emergências são fechadas, pacientes morrem nas filas de espera dos hospitais, médicos se recusam a atender às pessoas, inclusive crianças, e planos de saúde cobram valores extorsivos de seus conveniados com o aval do Estado, tornando-se um serviço para as elites, a série “Sob Pressão”, que exibe um grupo de médicos abnegados e heróis em busca do cumprimento de suas promessas de salvar vidas é no mínimo necessária e obrigatória para o telespectador brasileiro. Uma obra para ser vista, analisada, pensada e refletida, sem pressão. Ao contrário de nosso país, no qual a maior parte da população dorme e acorda sob uma implacável e constante pressão… de sobrevivência.

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