
Cláudia Abreu mergulhou em uma longa e profunda pesquisa sobre Virginia Woolf para levar aos palcos o seu primeiro texto teatral
Nas Artes Cênicas ou em qualquer meio de expressão artística quando se objetiva retratar uma personalidade de alcance mundial e de notada relevância para a área da qual faz parte há que se ter em mente que uma profunda e longa pesquisa deve ser obrigatoriamente realizada. Foi o que fez a consagrada atriz, roteirista e produtora carioca Cláudia Abreu, amada em todo o Brasil por seus inúmeros personagens na TV, também com presença respeitável tanto nos palcos quanto nas telas de cinema, com a escritora inglesa Virginia Woolf (1882-1941), a quem já fora apresentada no espetáculo “Orlando” (1989), com direção de Bia Lessa. Por alguns anos, Cláudia, formada em Filosofia, mergulhou na rica obra da autora de clássicos como “Mrs. Dalloway”, “As Ondas” e “Ao Farol”, relendo seus livros, estudando suas biografias, diários e memórias. Desta imersão literária surgiu não só o primeiro monólogo da intérprete como também o seu brilhante primeiro texto teatral, digno dos mais experientes dramaturgos, “Virginia”, com direção de Amir Haddad (com quem já havia trabalhado em “Noite de Reis”, em 1997) e codireção de Malu Valle, dois profissionais fundamentais para a concretização do projeto.
Os diretores Amir Haddad e Malu Valle exploram com proficiência as possibilidades que o binômio texto/ator lhes oferece
Estruturalmente, não é tarefa fácil condensar a tumultuada e trágica vida pessoal e gloriosa trilha literária de Virginia Woolf em uma hora de encenação, no entanto, com habilidade e noção precisa do espaço dramatúrgico, Cláudia logrou admirável êxito. A autora ofertou ao público com sensibilidade e delicadeza todas as fases marcantes de sua retratada, revelando sua postura feminista, “avant-garde” e competitiva, sua luta contra a opressão paterna, a admiração pela mãe, a paixão pelo conhecimento que lhe foi negado nas escolas, suas constantes angústias, inseguranças, crises nervosas, lapsos de memória, dores com a perda de entes queridos e com os abusos sexuais sofridos, confrontos entre lucidez e loucura, além de suas relações com os muitos irmãos, sua bissexualidade, seu problemático casamento e seu encanto pelo grupo intelectual de Bloomsbury. Vale ressaltar que a dramaturga utilizou a mesma técnica literária usada por seu objeto de estudo, “os fluxos de consciência”, capazes de expressar as vozes reais e fictícias presentes na mente de um personagem. A direção de Amir Haddad (Amir começou a conduzir Cláudia ainda durante a crise sanitária mundial, em encontros virtuais e presenciais) e Malu Valle (que entrou posteriormente) é primorosa no sentido de se afinar completamente com o tom dramatúrgico proposto por Cláudia, em uma união saudável de liberdade e técnica colocada em prática pela atriz (a própria fez menção a isso em seu agradecimento após a sessão da peça). Na verdade, o que se vê é a franca e assumida valorização do binômio texto/ator, e os diretores exploram com reconhecida proficiência esta possibilidade. As marcações são variadas, heterogêneas, deixando a peça solta, fluida, dinâmica, com Cláudia tendo um palco nu e limpo só para si.
A interpretação de Cláudia Abreu é merecedora de ocupar um lugar de destaque no compilado de suas melhores performances
Quanto a Cláudia Abreu, se pensávamos que já havíamos testemunhado todo o seu espantoso talento nas várias searas em que atuou, enganamo-nos. Cláudia é capaz de muito mais, de nos surpreender a cada fala de seu texto e movimento executado em cena. Desdobrando-se com desenvoltura em personagens representativos daqueles que estavam no entorno de Virginia (pai, irmãos, marido, amante), e mostrando com intensidade e credibilidade a vasta gama de nuances e camadas emocionais que compunham a personalidade complexa da escritora, Cláudia reafirma mais uma vez que é uma das grandes atrizes de sua geração. Uma interpretação merecedora de ocupar um lugar de destaque no compilado de suas melhores performances. A direção de movimento de Marcia Rubin é excepcional, imprimindo beleza, força, leveza, cadência e harmonia ao instrumento corporal da artista. Cláudia, atendendo com disciplina às orientações de Marcia, mostrou ter um grau de expressividade de movimentos de seu corpo demasiado elogiável. Marcelo Olinto, figurinista, foi extremamente feliz ao vestir a protagonista com um bonito vestido branco longo com características atemporais e neutras, ornado com brocados e pequenos brilhos, com um corte que lhe permitiu executar com facilidade as movimentações e gestuais exigidos. Beto Bruel, a quem coube a iluminação, cumpriu belamente a sua função, alcançando resultados inebriantes com o uso prevalente do azul, da sépia e do branco em sutis nuances, debruçando-se com esmero em focos específicos e diferenciados. A trilha sonora de Dany Roland, com a colaboração de José Henrique Fonseca, possui elementos que nos intrigam e outros que nos chamam a atenção pela delicadeza dos acordes de instrumentos com cordas e teclados, compondo com vultosa satisfação o panorama geral cênico. “Virginia” é uma obra fascinante que destrincha as falas femininas e feministas de uma das escritoras mais influentes do século XX, abordando questões do gênero que afetam sobremaneira a sociedade até hoje. O feminino e toda a sua importância ganha vida e potência na doce e forte voz de Cláudia “Virginia” Abreu.








