Foto: Isabela Kassow
Quatro anos depois, em 2011, do escritor catarinense Cristóvão Tezza ter lançado o seu premiadíssimo livro autobiográfico “O Filho Eterno”, a prestigiada Cia Atores de Laura, liderada por Daniel Herz, no Rio de Janeiro, decide adaptá-lo, pelas mãos de Bruno Lara Resende, para os palcos, tendo como protagonista do monólogo homônimo um de seus membros, Charles Fricks. O espetáculo, que até hoje é montado com sucesso pelos inúmeros lugares por onde se apresenta, levou o intérprete a conquistar os Prêmios Shell e APTR de Melhor Ator. Há quase duas semanas encenada no Teatro da UFF, em Niterói, cidade fluminense, dentro do projeto “Solos em Cena”, que reúne dezesseis encenações do gênero, Charles pôde novamente emocionar o seu público. “O Filho Eterno” narra a história de um escritor de apenas 28 anos, com dificuldades de ser reconhecido no mercado editorial, defensor de conceitos sobre solidão e ideias bastante particulares e pessoais, casado, que se vê à primeira vista entusiasmado com a notícia de que será pai, e que após o diagnóstico de que seu filho é portador da Síndrome de Down, desespera-se e se entrega às visões mais terríficas de sua atual situação. A peça, que se passa em 1980, detalha o passo a passo da agonia deste pai em meio à absoluta ausência de informações precisas e prognósticos otimistas a respeito desta alteração genética, a Trissomia 21 (um cromossomo 21 a mais no código genético humano, que se somou aos outros dois), chamada à época errônea e cruelmente de mongolismo. Só mais tarde, com os avanços dos estudos médicos e científicos, a introdução de métodos coletivos de adaptação, reabilitação, motivação, incentivo e aplicação de práticas multidisciplinares, a doença tão assustadora para os seus pais passou a ser chamada de Síndrome de Down (descrita pelo médico inglês John Langdon Down em 1866, e só em 1959 o também médico, o francês Jêrome Lejeune, descobriu que sua origem era genética). O escritor, que até o momento tinha uma existência enraizada na sua libertadora solidão (a despeito de ser casado), alimentada por doses constantes de uísque, depara-se de uma hora para a outra com diversos fantasmas que o assombrarão, e por consequência lhe usurparão a venerada liberdade. O filho, Felipe, nome forte que permite diversas entonações, eterno em sua “anormalidade”, fez com que se defrontasse com sentimentos que até então lhe eram estranhos e inexistentes, como o preconceito, a culpa e principalmente a vergonha. Acometido de uma fúria “raivosa”, o pai, que sobrevive graças a aulas de redação e a revisões de teses de mestrado, por ironias de seu destino, divertiu-se ao corrigir os potenciais erros gramaticais de uma delas, que dissertava exatamente sobre a doença que agora fazia parte de seu cotidiano. O devastador inconformismo do literato o fez relatar com assombrosa insensibilidade as anomalias características de seu recém-nascido. Não somos poupados em nenhum instante da perturbadora ignorância e preconceito deste indivíduo que se achava superior aos seus pares devido à sua vocação natural para as letras, e a partir dela construir os seus romances, sempre com a marca de seu “esclarecimento. Seus traumas vigentes também se devem ao aterrador formalismo dos médicos assoberbados em seus jalecos brancos e assépticos, eivados de sadismo desconcertante, ao darem aos familiares “as piores notícias de suas vidas”. Como enfrentar os amigos a partir de agora? O que dizer a eles? Responder-lhes que o seu filho é “mongol”? Esta e tantas outras questões aflitivas por vezes o encaminhavam para um escapismo supostamente salvador, escrevendo de modo compulsivo e aleatório suas histórias inacabadas. O homem que se aprazia com os sons e a morfologia das palavras, agora testemunhava o seu rebento com traços diferentes na face, altura menor, com dificuldades de locomoção, isolado em um mundo próprio, balbuciar ininteligíveis simulacros de vocábulos. Creches rejeitam a permanência do menino Felipe, alegando ao seu progenitor que simplesmente ele não se “adapta” ao local. A exclusão pela sociedade de seu filho acaba sendo a sua exclusão pessoal. Uma sociedade que invariavelmente não se importa em excluir o não igual. Uma sociedade onde não há lugar para a diferença. O escritor clama pela “normalidade”, que se afugentou de sua vivência. A chegada de uma filha “perfeita” aplaca de alguma maneira esta sensação de se estar “à margem da vida e de todos”. O filho cresce, os anos passam, e as pequenas e rotineiras situações diárias exercem a função de “normalizar” o que antes era impensável. O seu velho Fusca amarelo lhe serve para gargalhar diante do inesperado progresso do filho em meio a uma adversidade do trânsito. Diminutas e crescentes mudanças, imperceptíveis apenas para quem não as quer ver, ocorrem dia após dia. Partidas de futebol se transformam em grandes eventos de confraternização entre o pai e o filho, antes longamente distantes um do outro. O modo efusivo e a inteligência e compreensão de mundo de seu filho evidenciados defronte a um prosaico jogo de futebol provocaram no escritor desacreditado da vida e de um Deus do Velho Testamento uma evolutiva alteração em sua percepção distorcida e implacável da realidade que envolvia o seu filho e a si mesmo. O problema não estava na doença de quem gerara, o problema não estava no cromossomo 21 excedente, o problema era ele. O sorriso puro, cheio de afetividade de seu filho, capaz de remover as posições mais empedernidas e duras perante o mundo no qual vivemos, fez surgir no pai “castigado” um ser humano avivado, obrigado a se reavaliar, obrigado a rever as suas noções arbitrárias de espaço e tempo, a modificar a forma como idealizava a relação ideal de um pai e seu filho, e a relativizar o conceito discriminatório do que seja normal. A dramaturgia, uma adaptação de Bruno Lara Resende, carrega em si inegáveis méritos, que vão desde a maneira com que fora estruturada formalmente até o modo certo encontrado para se atingir o público, sem que se deixasse cair na tentadora armadilha da pieguice e dos clichês melodramáticos, elementos que poderiam ser utilizados se levarmos em conta a delicadeza e o apelo do tema em pauta. Bruno foi bastante honesto ao transpor para o teatro a incensada obra de Tezza. Esta honestidade é identificada na abordagem franca e sem rodeios dos conflitos, incômodos em sua natureza, envolvendo o pai e a sua rejeição ao filho diferente. Não deve ter sido nada fácil para o dramaturgo/adaptador “criar” uma nova história para aquela que já nos foi contada com demasiado êxito pelo autor de “O Filho Eterno”. Mexer em algo “pronto” é arriscado, perigoso, um ato de coragem. O valor de Lara Resende em seu feito se torna ainda mais realçado se partirmos do princípio de que se trata de uma experiência real, dolorosa e íntima revelada pelo escritor, fator que exigiria cuidado, cautela e prudência máximas em sua adaptação, sem deixar de lado as doses de emoção pertinentes, e o fio de razão necessário. O texto caminha, sempre com equilíbrio, pelo viés da narração feita pelo próprio intérprete, e pela legítima vivência dos fatos pelo personagem com os outros integrantes do enredo. A direção de Daniel Herz para o primeiro monólogo não só de sua companhia mas de seu protagonista Charles Fricks se revela, desde o começo da encenação, determinada e resoluta em seus objetivos cênicos, não hesitante quanto aos rumos interpretativos sugeridos para o seu ator, e reconhecidamente sensível, perspicaz e inteligente. A inteligência de Daniel se traduz em conduzir Charles por uma linha de interpretação que não causasse nos espectadores uma repulsa àquele homem/pai imbuído dos mais desprezíveis preconceitos e ignorância. Mas acontece algo que se assemelha a uma espécie de compreensão coletiva por parte de quem assiste ao desespero avassaladoramente humano daquele indivíduo agora fraco em suas certezas. A pusilanimidade daquele pai em nenhum momento nos causa empatia, mas também não chegamos à pretensão de julgá-lo até que se findem os acontecimentos. Daniel Herz se alterna na priorização dos silêncios e pausas do pai, indispensáveis para o entendimento de sua dor individual, e na dinâmica de cena, percebida pelos movimentos abruptos ou não do personagem pelo espaço da ribalta, indicativos de instantes de euforia, ansiedade e intranquilidade. Todo este denodo do encenador resultou em um espetáculo fluido, ágil, porém respeitoso ao seu tempo particular e único. Charles Fricks, ao defender a figura do pai, chamou para si uma grande e desafiadora responsabilidade. O pai por ele representado não simboliza tão somente a figura ancestral do progenitor, mas a de um homem, no sentido amplo do termo, em toda a sua dimensão humana, com o seu respectivo papel dentro de uma sociedade contemporânea. A Charles coube organizar, e após difundir por meio de sua notável e intensa atuação as muitas camadas psicológicas, comportamentais, emocionais e existenciais do escritor arrebatado pelo imprevisível, perturbado pelo inevitável confronto com o desvio da “rota da normalidade”. Seu personagem possui inquestionável complexidade, evidenciada em não poucos aspectos, percebida por nós à medida que os acontecimentos da narrativa se desdobram. Fricks percorre com força dramática e intenções interpretativas bem definidas o longo e penoso caminho do pai até alcançar os últimos degraus que o levam à redenção pessoal. Aurélio de Simoni nos fornece uma bela e elegante iluminação, ficando-nos claro de que os seus objetivos primeiros não eram o de realçar ou sublinhar as dores, angústias e ansiedades daquele pai, e para isso o prestigiado profissional da luz optou por tons mais alegres e claros. A luz aberta que perpassa boa parte do espetáculo em nenhum momento nos transmite a ideia de sofrimento, ao contrário, a sua leveza serve como contraponto ao peso sofrido pelo protagonista. Isto também não quer dizer que Aurélio não se eximiu de usar focos mais intimistas, principalmente iluminando somente a face do ator, e se utilizando de blecautes e um jogo lateral de luzes que advieram de refletores postos sobre o chão, fora do palco, causando um potente efeito. Vemos na interpretação de Charles Fricks, associado a ela, um pujante componente que a diferencia em seu conjunto: o movimento. Quem ficou a cargo da direção de movimento da montagem fora Marcia Rubim. Marcia explorou todos os limites corporais e de movimentação no palco possíveis e viáveis ao ponto de traduzirem com exatidão toda a gama de camadas emocionais por que passa inevitavelmente o personagem. Suas aflições e angústias são decodificadas em gestos e posturas, assim como a sua culpa, sua redescoberta de valores, efusividade e redenção pessoal. O figurino coube a Marcelo Pies, que vestiu Charles Fricks com inegáveis garbo e sobriedade. O pai traja um conjunto em tons terrosos que engloba terno, calça e mocassins, tendo como contraponto um colete com xadrezes. Uma neutralidade condizente com o perfil de um homem comum da sociedade, adequada à contextualização da profissão que exerce. A trilha sonora original de Lucas Marcier marca com precisão, apostando admirável e acertadamente nos acordes instrumentais, de forma instigante e progressiva, no sentindo de acompanhar com coerência, sem quaisquer resvalos para o pieguismo ou apelo fácil dramático, as fases diversificadas pelas quais transita o personagem pai, respeitando assim todas as suas mudanças, comportamentos e reações face às contingências adversas, e obedecendo com reverência às situações redentoras e de libertação. O cenário de Aurora de Campos segue a linha segundo a qual quanto menos recursos cênicos desnecessários e excedentes no campo teatral forem utilizados melhor e mais bem-sucedida será a aproximação do espectador com a narrativa contada. Para se colocar no palco, não sendo mais do que suficiente, e Aurora sabe bem disso, os elementos úteis que sirvam de apoio visual para se desenhar com esmero e eficiência os dramas compartilhados pelo pai e seu “filho eterno”, a cenógrafa recorre a um belo e amplo painel azul no fundo da ribalta que simboliza com fidelidade o céu a que tanto se refere o personagem na berlinda. As cadeiras, tão simples quanto múltiplas em suas funções práticas, fazem jus ao seu valor como objeto cênico, cumprindo sua missão com significância. “O Filho Eterno” não à toa é um espetáculo que até hoje emociona, faz-nos refletir, pensar, questionar e reavaliar nossos, por vezes, tão errados valores. A montagem, com sua transparente pujança dramatúrgica e nível elevado das verdades interpretativas de seu ator, é um avassalador manifesto, sem imposições, e sim por suas situações esmiuçadas, contra um de nossos mais ruinosos vícios: o preconceito. O preconceito, seja ele qual for. O preconceito, este sentimento tão arcaico e maculado de ignorância, como a própria morfologia de sua palavra nos indica, atravessa a história do homem, e se mantém sólido e inexpugnável em grande parcela da humanidade. Neste caso, trata-se do preconceito inicial de um pai que não aceita o fato de seu filho esperado ser portador da Síndrome de Down. Um preconceito pontual num mar gigante de outros tantos preconceitos, ricos em suas ramificações e extensões. Mas “O Filho Eterno” possui uma outra função importantíssima, que é a de nos fazer despertar para uma emoção que não raro se mantém quieta, silenciosa e latente, mas que, no entanto, ao ser descoberta, revelada e transmitida ao próximo tem a capacidade irremovível de transformação social, e melhora, sem exageros, do mundo. A ela se dá o nome de afetividade. Somente ela é capaz de vencer oponentes poderosos como o preconceito. Não bastam o conhecimento e a vontade de mudança de valores e posições individuais. É preciso que se descubra em si próprio a nossa afetividade. Que todos nós, assim como aquele pai que conhecemos, façamos da afetividade a nossa “Filha Eterna”.